segunda-feira, 10 de julho de 2017

As comemorações dos 500 anos da atribuição do Foral Manuelino a Guimarães.

  

                                                        1 - Introdução


     A Sociedade Martins Sarmento está a comemorar os 500 anos do Foral que D. Manuel I concedeu a Guimarães, em 1517. Uma das iniciativas consistiu em proceder à reedição do Foral Manuelino, incluindo um fac-simile do documento original. O texto da anterior edição e agora a revisão é da autoria da Drª. Maria José Marinho de Queirós Meireles, onde faz um estudo codicológico do texto, guardado cerca de 400 anos nos Paços do Concelho e, desde 1922, na Sociedade Martins Sarmento, integrando o seu arquivo documental.
      A Sociedade Martins Sarmento, fundada em 1881, em homenagem ao arqueólogo e etnógrafo vimaranense, Francisco Martins Sarmento, é uma instituição cultural de utilidade pública, sem fins lucrativos. Os seus estudos científicos atrairam para Guimarães a atenção dos principais centros de cultura portugueses e estrangeiros do seu tempo. Abrange o Museu Arqueológico, a Citânia de Briteiros, o Museu de Cultura Castreja, a Biblioteca e a Galeria de Exposições.
 Os velhos forais, uns eram originários e outros confirmativos ou ampliativos. Assim, a mesma localidade, ao longo da sua história, (anterior à reforma de D. Manuel I) pode ter recebido mais que um foral, o primeiro dos quais (originário) é fundamental e o posterior ou posteriores vêm a seguir para confirmar, completar ou ampliar.
       Recorde-se que o 1º foral de Guimarães (e do Condado Portucalense) foi concedido em 1195/6 por D. Henrique e D. Teresa, sendo confirmado por D. Afonso Henriques, a 27 de abril de 1128. Neste foral, D. Afonso Henriques começa por agradecer aos vimaranenses o apoio que estes lhe deram aquando do cerco a Guimarães, posto em 1127, pelo seu primo, D. Afonso VII, rei de Leão e Castela, que exigia vassalagem. Note-se que pouco tempo depois, D. Afonso Henriques iria precisar de idêntico apoio popular, na Batalha de S. Mamede, travada a 24 de junho de 1128. O foral foi novamente confirmado por D. Afonso II, em 1217.  
    Porém, nos finais do sec. XV, o estado dos forais concedidos às populações, nos primeiros tempos da monarquia, encontravam-se totalmente desatualizados e grande parte deles falsificados, entrelinhados ou não autorizados. Quem o afirma são os procuradores dos concelhos (representantes do povo) nas Cortes, começadas em Coimbra em 1472 e terminadas em Évora em 1473, ainda no tempo de D. Afonso V. Essa queixa encontra-se assim formulada:

   “os forais de cada lugar, por onde se mais rege e governa vosso reino...são hoje em dia e assim todos ou a maior parte deles, falsificados, entrelihados, rotos, não autorizados e os tiram (os poderosos) do seu próprio entender, nem são interpretados a uso e costume d`ora, nem são conformes a alguns artigos e ordenações vossas...” E terminam pedindo ao rei que mande “examinar e extirpar as burlas e enganos dos forais e para isso os mande ir todos, sem exceção, à Corte”.
   
  Na sequência de tal pedido, foram reunidos na Corte os velhos forais, na sua quase totalidade escritos em latim, contendo referências a moedas em desuso ou que, com o decorrer dos tempos, tinham alterado de valor. Por vezes, mencionando pesos e medidas arcaicas, de tal modo que, sob o mesmo nome, ocultavam diferenças consideráveis entre si, da região para região ou até de concelho para concelho.
  Coube a D. Manuel I reconhecer e satisfazer a vontade dos queixosos, procedendo a uma profunda reforma dos velhos forais, ordenada em 1497. O primeiro foral reformado foi o de Lisboa, em 1500 e o último em 1520. Após a reforma e até ao sec. XIX só foram concedidos mais quatro forais, conhecidos pelo nome de forais novíssimos. Por decreto de 03.06.1822, os Constituintes reduziram ou extinguiram muistas das prestações foraleiras. A reforma de Mousinho da Silveira, em 13. 08.1832, extinguiu-os definitivamente.


                                         2 - Os forais como fonte de direito

   Postas estas considerações, analisemos agora os forais na perspetiva menos conhecida do público em geral, ou seja, sob o ponto de vista jurídico. 
  As cartas de privilégio são diplomas, outorgados pelos monarcas ou pelos senhores, concedendo um regime especial, de favor, a certa pessoa ou agrupamento de pessoas. De entre as cartas de privilégio estão as cartas de foral ou, simplesmente, forais, documentos que, aos habitantes de determinada terra, pré-existente ou a fundar, concediam certas regalias, principalmente de caráter fiscal e administrativo.
      Os forais foram importantes fontes de direito, na medida em que, para além de conceder a uma coletividade o domínio de um território que eles iriam povoar, cultivar e defender, definiam tambem os direitos e deveres coletivos dos seus habitantes, perante a entidade concedente do foral (rei ou senhor), bem como estatuir ou fixar o direito público local ou, pelo menos, certos aspetos desse direito.
       O normal conteúdo de um carta de foral são disposições relativas a impostos, aproveitamento de terrenos comuns, a composição e multas devidas pela prática de crimes, imunidades coletivas, deveres de serviço militar, encargos e privilégios de cavaleiros e peões, onus e forma das provas judiciais, conservação da paz, etc..
A. Herculano adota um conceito demasiado restritivo de foral, qualificando de forais apenas os diplomas que conferem existência jurídica a um município, indiciada que seja por qualquer magistratura própria ou privada. Não se verificando esta caraterística, segundo Herculano, estamos em presença de meras cartas de povoação ou contratos agrários coletivos (cf. H.P.- Tomo IV - 42, 45, 52). Praticamente todos os autores contrariam esta conceção de foral  por ser demasiado restritiva, invocando o facto de existirem concelhos que não têm foral ou só o receberam em fase adiantada da sua existência ou existirem forais que não têm subjacente organização municipal.
Na sua forma, os forais, ao longos dos tempos, tenderam a formar certos padrões ou tipos, ditados por condicionalismos geográficos ou económicos e até pelo desejo de o próprio poder central pretender introduzir certa uniformidade que se sobrepusesse ao particularismo consuetudinário. Assim, frequentemente, o monarca adota como modelo um anterior foral para conceder a outra povoação.
Importantes fontes de direito eram também as chamadas concórdias ou concordatas que constituiam a solução dada, mediante acordo, a desavenças geradas entre o rei e o clero, com vista à definição e reconhecimnto de recíprocos direitos e obrigações. Ainda hoje se praticam estas concordatas, como acontece atualmente com o Estado Português e o Estado do Vaticano.
   Excetuando os forais e as concordatas, os documentos escritos - régios ou particulares - (v.g. vendas, doações, permutas, testamentos e contratos agrários...), lavrados para atestar a prática de um ato jurídico não são fontes de direito, sobretudo na época em análise, mas são fontes da história, revelando como decorria a vida jurídica, quais os costumes praticados e as normas aplicadas, como funcionavam as instituições, além de provarem factos passados, as datas em que ocorreram e as pessoas que neles intervieram.
Eram elaborados por notários, na presença dos outorgantes, testemunhas e confirmantes.  Para a elaboração dos documentos régios existia a chancelaria do rei, mas as corporações monásticas tinham o seu “Scriptorium” que redigiam os documentos relativos a atos que beneficiavam, levando depois a robora (assinatura) régia.
         Por sua vez, os formulários, não sendo fonte de direito, tiveram também grande importância prática na vida do direito medieval, na medida que por eles se pautava a redação dos atos jurídicos que deviam respeitar certas solenidades para serem válidos ou eficazes. A fórmula era também uma fonte de história jurídica do maior valor porque, à semelhança dos documentos, nos mostra como decorria a vida jurídica e os costumes praticados.
                     
                     3 - Caraterísticas do direito nos primeiros anos da monarquia.

     Relativamente às caracteristicas do direito neste período, predomina o direito consuetudinário e foraleiro, ou seja, derivado dos costumes ou dos forais. O Estado da reconquista não dirige a sua atenção principal para as tarefas administrativas, nem para a produção do direito. É um Estado guerreiro e não, essencialmente, administrador ou legislador. Assim, a população dos reinos peninsulares, abalada pela invasão muçulmana e pelos próprios movimentos migratórios, que a reconquista provoca, ficou entregue a si mesma, num condicionalismo local, que, pela necessidade das coisas, tendia para a autosuficiência, começando então a viver o seu próprio direito, que não é criação do rei. É neste ambiente, de abalos sociais e desorganização causados pela invasão muçulmana e pela reconquista que se verificou um florescimento do direito consuetudinário, em detrimento da lei escrita.
    No que respeita às origens e elementos das formações consuetudinárias e foraleiras deste período é de salientar as experiências jurídicas romanas, germânicas, muçulmanas e francas. Além deste direito consuetudinário e foraleiro, formado ao longo dos tempos, há que referir o Código Visigótico que se manteve durante a Idade Média, na sua forma vulgata. No território português são abundantes as provas de aplicação deste Código, sendo muito frequente nos documentos da época encontrarem-se citações do Código, designado pelo nome de “lex gotorum”, “forum iudicum”, “liber iudicum” e “liber iudicialis”. Tais citações tem por finalidade mostrar a legalidade de determinado negócio jurídico: por exemplo, numa doação de 1110, referente a bens situados perto de Vila de Conde, figura entre os confirmantes “Petrus iudex (Pedro juiz) aba qui tenet lex Gothorum”. Também na doação feita aos franceses moradores em Guimarães de um campo situado junto ao paço real (palatium regale) fala-se também de “in Gotorum legibus” (Doc. Med. nº 55).    
     Encontram-se documentadas citações do Código Visigótico por todo o sec. XII. Todavia a partir do sec. XIII, começam elas a escassear por várias razões: no âmbito local, de há muito que a sua vigência era contrariada pela força do direito consuetudinário; no geral, a crescente atividade legislativa dos monarcas e o início da receção do direito romano acabaram por suplantar a “lex gothorum”. Os princípios do direito romano, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, informaram o nosso Código Civil de 1867, bem como os códigos em quase todos os paises da Europa.