sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O assassinato de Francisco Agra

                               O ASSASSINATO DE FRANCISCO AGRA


        No dia 26 de julho de 1901, quarta-feira,  das 5 para as 6 horas da tarde, o corpo de  Francisco Ribeiro Martins da Costa, mais conhecido por Francisco Agra, é encontrado estendido no chão, num dos caminhos da bouça da Pousada, pertencente à sua quinta da Agra, situada a poucos minutos de S. Torcato, para aonde se havia dirigido para acompahar as obras que ali realizava. O corpo, encontrado por um pedreiro que se dirigia com os picos para a forja dos Mosteiro, "estava de costas, barba empastada de sangue e o fato de linho branco enodoado de terra e sangue" e que o moço dos picos imediatamente identificou como sendo Francisco Agra. Ao pedido de socorro, logo compareceram no local várias pessoas, entre as quais os pedreiros das obras e José da Silva Oliveira, mais conhecido por Zezinho de Segade, que, consternado, quase chorava perante o sinistro achado.
    No dia 29 do mês de junho desse ano, um preso da cadeia da Relação do Porto envia uma carta ao administrador do Concelho, António Mota Prego, informando-o de que está apto a revelar o autor do crime, o que veio a acontecer no dia 5 de julho. Nas suas declarações, esse preso imputa a responsabilidade do crime a Júlio de Campos, lavrador e proprietário da freguesia de S. Torcato, a quem ouviu várias vezes dizer que havia de matar o Agra, pelo facto de ele o não ter protegido nas questões judiciais que o levaram à cadeia. Na sequência da denúncia, Júlio de Campos é preso, apesar de negar a prática do crime e de alegar que Francisco Agra era o seu melhor amigo, a quem devia alguns fovores.
    Efetuada a investigação, o Júlio de Campos acaba por ser acusado e pronunciado "pelo crime de homicídio, seguido de roubo dum relógio e corrente de ouro, na pessoa de Francisco Agra, tendo-o esperado mais de uma vez, armado de espingarda, emboscado e oculto em lugar ermo da quinta da Agra, onde era certo que a vítima devia passar". O tiro foi disparado detrás de um muro, situado do lado direito de quem segue monte acima.
   A audiência de julgamento, realizado no atual edifício do Arquivo Alfredo Pimenta, com intervenção do juri, formado por 9 elementos e um suplente, previamente sorteados, iniciou-se no dia 12 de dezembro de 1901, com a presença de um grande número de pessoas, por ser véspera da festa de Santa Luzia que, na altura, atraía à cidade e à capela da santa milhares de devotos de todo o norte de Portugal.
   O tribunal de juri era presidido pelo juiz A. Fernades Braga, sendo Delegado do Ministério Público o dr. António Vicente Leal Sampaio. A família da vítima era representada pelo mestre de direito, Avelino Cesar Calisto e pela então chamada Ordem do Patrocínio, Gaspar Abreu de Lima. O escrivão do processo foi José de Oliveira, servindo como oficial de justiça Augusto Borges.
   No banco da defesa do arguido sentou-se o dr. Afonso Costa, líder parlamentar e que viria a ser também lider do partido republicano e ministro da justiça do primeiro governo provisório da 1ª República.
 Entre as testemunhas da acusação encontrava-se o Zezinho de Segade a quem Afonso Costa faz um cerrado interrogatório, apesar da testemunha declarar que era amigo de Francisco Agra, de quem era rendeiro, mantendo com ele sempre as melhores relações de amizade. A esta declaração, Afonso Costa respondeu do seguinte modo: "e se eu provasse que o assassino de Francisco Agra, nem é Júlio de Campos, nem está longe de mim"? "Essas habilidades não me amedrontam, pois quem não deve não teme", respondeu Zezinho de Segade.
   Nas alegações finais, o Delegado do Ministério Público traça o perfil de Francisco Agra, salientado a face política da vítima, afirmando que "ele foi na sua terra, como político, sacrificando-se, trabalhando pelos outros, morrendo sem uma venera, sem títulos, sem nada receber do Estado". Enquanto o Ministério Público e o advogado assistente pedem a condenação do arguido Júlio de Campos, Afonso Costa saúda a opinião pública da cidade de Guimarães dizendo que "no começo do julgamento ela era quase unânime contra o arguido Júlio Campos, mas agora, nesta altura do apuramento de contas, a opinião do publico vimaranense afirma a inocência do arguido". O juri recolhe para deliberar, dando como provada a inocência de Júlio de Campos.
   O Delegado do Ministério Público (hoje chama-se procurador) recorre da sentença, tendo Júlio de Campos ficado em liberdade mediante caução de 5 contos, prestada pelo comerciante Bernardino Jordão, em virtude de o arguido não ter meios para a prestar. Nesse recurso, o Ministério Público arguiu nulidades e os tribunais superiores mandam repetir o julgamento. Então o Júlio de Campos volta a ser preso para, em prisão preventiva, aguardar o novo julgamento. Na repetição do julgamento, tanto o Ministério Público como o advogado assistente voltam a pedir a condenação do júlio de Campos, apesar de Afonso Costa, no interrogatório da testemunha Zezinho de Segade, ter descoberto que o verdadeiro assassino estava perte de si, ou seja, era a própria testemunha de acusação, Zezinho de Segade, mas que a acusação não tinha dado crédito.
   As 6 horas da manhã do dia 20 de fevereiro de 1903, o novo tribunal de juri, presidido por outro juiz (Francisco A. da Silva Leal), absolve novamente Júlio de Campos e o seu advogado logo alí declara  que iria, com o seu cliente, proceder a averiguações por sua conta e risco. E em consequência de várias deligências, Zezinho de Segade é preso, confessando no primeiro interrogatório a autoria do crime, alegando que matou "por ciume, pois, o Agra pretendera desencaminhar a sua amante. Dera-lhe 20.000 reis para que fosse ter com ele, Agra, a um pinheiral".
    Em julgamento, curiosamente iniciado também no dia 12 de dezembro, mas de 1904, nega a sua confissão.
   Zezinho de Segade acaba por ser condenado a pena maior, beneficiando de dois perdões que o devolvem mais cedo à liberdade. Pouco tempo depois aparece enforcado numa árvore, nunca se sabendo se tal ato foi praticado por suicídio ou homicídio. No lugar em que foi assassinado Francisco Agra foi erguida uma memória em pedra. 
     Este erro judiciário, que agora se põe em foco, prova quanto é perigosa a existência da pena de morte, ainda em vigor em muitos países, e contra a qual a Amnistia Internacional elegeu como prioridade do seu combate.

   Tema publicado pelo autor, em 1995 e 2010, no Notícias de Guimarães, tendo como fonte de informação "Os Grandes Dramas Judiciários", de Sousa Costa.                                      

                                                 Vida e obra de Francisco Agra 

       Francisco Ribeiro Martins da Costa (Francisco Agra) nasceu em Guimarães, no dia 30.06.1849. Era filho de Francisco José Ribeiro de Abreu e de Ana Emília de Araújo Martins da Costa. Foi batizado na igreja de S. Miguel do Castelo. Frequentou o 1º curso de filosofia e matemática  na Universidade Coimbra, mas do qual desistiu. Avesso a honrarias,  era muito respeitado no meio social e político, sendo conhecido pela sua austeridade, lealdade e honradez. Foi chefe do partido Regenerador durante 20 anos, exercendo o cargo de Administrador substituto do Concelho em 1872/1873.
  Foi, juntamente com João Franco, um lutador incansável pelo progresso do concelho. Esteve na origem da Exposição Industrial de Guimarães, em 1884, da Escola Industrial Francisco de Holanda e da reorganização da Colegiada e do Seminário de Nossa Senhora de Oliveira e do Liceu Nacional.
   A sua residência, na rua de seu nome, em Guimarães, serve atualmente de sede ao Círculo de Arte e Recreio (CAR), Associação cultural vimaranense de reconhecidos méritos.
                                                                             Narciso Machado





quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Memórias de Guimarães




                A Rede Viária Romana e Medieval do Concelho de Guimarães

                                                 As origens de Guimarães

   Antes de tratar da romanização de Guimarães, vejamos o que dizem as narrativas acerca das suas origens.
  Quando se fala nas origens de Guimarães logo se pensa em Mumadona, na construção, em meados do sec. X, da torre (castelo) de S. Mamede e no mosteiro dúplice de monges e freiras, onde viria a nascer um importante centro urbano, cultural e religioso.
   Porém, outra narrativa reporta as origens de Guimarães a uma antiga povoação da Lusitânia, com o nome ARADUCA (de Ara-Ducum =Altar dos Capitães), de localização incerta, dividindo-se os autores entre Guimarães, Amarante e até Aljubarrota.
   Por exemplo, Manuel de Faria e Sousa, na "Fonte de Aganipe" diz que Araduca corresponde ao local onde hoje é Guimarães. Igual opinião tem Filipe de Gândara, nas "Armas e Triunfos da Galiza", o padre João Batista de Castro em "Mapa de Portugal", o padre António José Ferreira Caldas em "Guimarães - Apontamentos para a História", Contador de Argote e Molécio. Gaspar Estaço, nas "Antiguidades de Portugal" localiza Araduca a 17 léguas e meia da foz do rio Douro. 
    Já Bernardo de Brito, na "Monarquia Lusitana" e Manuel da Esperança, na "História Seráfica dos Frades Menores" dizem que Araduca corresponde a atual Amarante. Porém, a opinião maioritária é, sem dúvida, a favor de Guimarães.
   Convém não confundir ARADUCA com ARADUCTA, antiga cidade que parece corresponder à atual vila de Arouca.
      Vejamos o que nos diz António Caldas (1843 - 1884) a respeito de Araduca, antiga Guimarães, na referida obra, a  pags. 28 e 29:

  "Esta antiquíssima povoação, assim diversamente nomeada, circunscrevia-se entre os rios Ave e Vizela, junto ao monte Latito, hoje monte de Santa Maria e Monte Largo, a uma área pouco dilatada e - "cercada de uma muralha bruta, pouco alta, e esconsa, sem ameias, assentada sobre uma barbacã" que devia ter por centro aproximadamente a atual igreja de Santa Margarida. No último quartel do sec. XVII já todas as ruas da antiquísssima vila estavam desfeitas e arruinadas e apenas se conservava a que hoje ainda resta com o título de Santa Margarida: tudo o mais foi repartido em quintais particulares, em cuja cultura se encontravam alicerces em quantidade, vestígios seguros das primeiras edificações.
   Mas ainda assim tão pouco importante, como seria, gozou da sua autonomia por um longo período, e chegou a ter as sua jurisdição separada da nova vila de Guimarães; e tanto assim, diz o padre Torcato de Azevedo, nas suas MEMÓRIAS RESSUSCITADAS, pag. 163, que ainda em uma procissão, que a Câmara costuma fazer todos os anos no 3º Domingo de Julho ao Anjo Custódio, que sai da real colegiada, acompanhada da Colegiada, Câmara, e Ministros, e Povo, e entram na vila de Araduca, e na igreja de S. Miguel do Castelo reza o Cabido certas orações, e quando sai da Colegiada leva o juiz de fora um pendão de cor vermelha, e nele um painel com a imagem de Santo Anjo, e chegando ao distrito da vila de Araduca para mostrar que aí se não estende a sua jurisdição, o entrega ao vereador mais velho.
Assim vemos ainda, no fim do sec. XVII, respeitados os restos dessa antiga povoação, que devia preceder muito a posterior fundação de Mumadona no século X".

                                                      A romanização 
                                       
A civilização romana deixou no território português grandes marcas a que se convencionou chamar romanização. De entre essses vestígios, destaca-se a rede viária romana que, apesar de ter atraído diversos estudiosos e investigadores, continua a ter mais dúvidas que certezas.
   Daí que os itinerários propostos sejam em grande medida, traçados conjeturais.
  O Povoamento do território do concelho de Guimarães e arredores, na época romana, está documentado pela arqueologia. Por exemplo, em Caldelas a testemunhar a utilização das termas romanas da vila das Taipas, encontra-se junto à igreja paroquial a "Ara de Trajano", três faces planas de um bloco granítico, com uma inscrição latina, datada do ano 104 a. C.. Foi classificada como monumento nacional em 1910. Em Vizela temos abundantes vestígios da civilização romana, com destaque para as termas. Ora, tais factos exigiam a presença de razoaveis vias de comunicação.
   Durante oito séculos, os romanos construiram uma complexa rede de estradas que foram, na Europa, as vias normais de comunicação terrestre, assegurando um acesso fácil, militar comercial, por todo o extenso império. A ação política, a pacificação e a ação civilizadora encontraram nessas estradas um instrumento precioso.
   As vias romanas atravessando, por vezes,, maciços montanhosos, umas eram empedradas ou lajeadas, outras em terra batida e cascalho, com valetas nas margens, eram sinalizadas por miliários, ou seja, colunas ou marcos de pedra, muitas vezes recordando o nome dos imperadores, sob cujo governo foram construídas e contiham indicações de distâncias em milhas (os miliários).
    Na Península Ibérica, as grandes vias transregionais ficaram bem apontadas num documento, composto na época de Caracala e revisto pelos finais do sec. III, intitulado "Itinerário de Antonino".
   Em Portugal, havia quatro estradas romanas de Mérida a Lisboa, uma de Lisboa a Braga (passando por Santarém, Coimbra e Porto) e quatro de Braga a Astorga, além de várias outras  que serviam outros centros populacionais importantes para época.
   Para além das estradas romanas, existem outras, construidas nos secs. XI/XII, contemporâneas das pontes românicas, chamadas estradas medievais. Na esteira de Veríssimo Serrão, pode-se dizer que foram as viagens de D. joão I, D. Manuel I e D. Sebastião que permitiram a criação de estradas designadas "estadas reais", seguindo trajetos que na maioria as sobrepunha às antigas estradas romanas ou medievais. 
    Ao longo das estradas do império romano, em intervalos estratégicamenta colocados, existiam as "mansiones" (mansões), ou seja, estações de repouso e descanso para os vajantes, funcionários civis e militares. Nesta mansões ou pousadas, podia o viajante adquirir víveres para si e para a sua comitiva e animais, ficando disponíveis para outra etapa da viagem. Existiam também as "mutationas", estações de muda de animais (montadas) e as "stationes", estações (postos que dispunham de garnição militar para garantir a segurança e controlo da rede viária em locais perigosos ou de passagem obrigatória.
         
                                            As estradas romanas e medievais  
                           
      Reativamente a Guimarães, sabe-se que a estrada medieval entre o Porto e Guimarães tem origem num traçado romano, que ligava a travessia do Douro, em Cale (Gaia), à via romana Braga - Mérida. Aqui em Guimarães, formaria um nó viário onde se localizava uma importante "Mansione" (Mansão), estação de apoio aos viandantes. Essa mansão estaria localizada no atual lugar da Pousada, na freguesia de Mesão Frio.
   Não esqueçamos que Guimarães estava situado entre duas termas, o que exigiriam, só por si, bons meios de comunicação. 
   Asim, de acordo com tal posição, a via romana Porto - Guimarães saía de Cale (Gaia), desenvolvia-se para nordeste em direção a Valongo e Alfena, onde cruzava o rio Leça, na ponte de S. Lázaro. Na rota entre o rio Leça e a ponte de Negrelos, sobre o rio Vizela, contornava a meia encosta pelo monte, pela face oeste e norte, e pelo maciço montanhoso do Monte Córdova, passando muito próximo do castro do Monte Padrão, rumando depois para S. Martinho do Campo, onde através da ponte de Negrelos, transpunha o rio Vizela, rumando para Guimarães, passando por Gondar, pela calçada da Veiga de Creixomil e entrando na vila, na Idade Média, por uma das suas Portas. Da ponte de Negrelos partiam outras vias romanas, rumando a outras direções.
 A via de Guimarães-Mérida, na Idade Média saía pelo Campo da Feira, rumando ou por Mesão Frio, Infantas, Sezedo  ou por Urgeses (fonte Santa), Pinheiro, Abação, Gêmeos, Calvos, Serzedo (ponte do Arco), Vila Fria, Pombeiro, Felgueiras, Freixo (Tongobriga), Marco de Canavezes - Merida.
   A Via romana Bracara Augusta -Vimaranes saía de Braga, rumava pela Falperra e depois seguia para S. Lourenço de Sande, S. Martinho de Sande. A travessia do rio Ave fazia-se pela ponte romana de Campelos, S. João de Ponte, Caneiros e entrava, na Idade Média, pela porta de Sta. Luzia.

   Nota:  
Incompreensivelmente, num painel informativo que se encontra junto da ponte românica da Pisca, em Creixomil. mandada colocar pelo então executivo vimaranense, não se faz uma única referência a via romana - medieval Cale- Guimarães, ao contrário do que acontece num outro painel informativo colocado pela Câmara de S.to Tirso, onde essa referência à estada Cale Guimarães existe. Só uma ignorância lamentável justifica tal omissão.
    
                            As pontes romanas e românicas em Guimarães

       As vias mais importantes exigiam a construção de pontes sólidas, a maioria das quais são perfeitas obras de engenharia, desafiando a fúria dos tempos. 
   Nos lugares secundários, muitas das pontes eram construidas em madeira (pons roboreus), pelo que, naturalmente, delas não existem vestígios. A travessia dos rios fazia-se também com barcas, processo que se manteve até aos sec. XIX/ XX
   As pontes romanas, construidas cerca de 900/1000 anos antes das pontes românicas eram todavia muito superiores na fruição, estética e rigor técnico.
    Muitas dessas pontes sofreram grandes danos e ruinas, tendo sido reconstruídas muito mais tarde, no secs. XIV /XVI e mesmo no sec. XVIII. Daí ser dificil encontrar uma ponte romana completa.
       As pontes romanas e românicas, confundidas pelo povo e até por alguns "historiadores" apresentam caraterísticas diferentes. Assim, as pontes romanas apresentam, como regra, o tabuleiro retilíneo (horizontal) e uma largura que permite o cruzamento de dois automóveis e os arcos, para escoamento das águas, são semicirculares. Além disso, se apresentarem pedras almofadas ou marcas  forfex (pequenas cavidades, feitas nos lados oposto do blocos de pedras, usados na construção da ponte, permitindo a entrada da forfex, ou seja uma tenaz da grua mecânica para levantamento e colocação desses blocos).
      Por sua vez, as pontes românicas, construidas no sec. XII-XIII, têm, como regra, o tabuleiro em forma curvilínea e com uma largura que não permite o cruzamento de dois automóveis, estando estruturadas para a passagem a pé e carros de tração animal, de acordo, aliás, com as necessidades da época. O pavimento do tabuleiro é constituído por lajes de granito e as guardas por pedras retangulares, interligadas por sistema de macheação (encaixes); os arcos são arredondados, mas não semicirculares como nas pontes romanas.
  Afigura-se-me que a classificação mais correta será considerar como ponte romana aquela constução que mantem o desenho original. Ponte romano-medieval quando existir uma reconstrução medieval sobre fundações romanas ou sem vestigios romanos, mas no alinhamento da rota romana.
   Aplicando estes exclarecimentos é de cocluir que no concelho de Guimarães existem duas pontes de origem romana, ou seja, a ponte de Negrelos, sobre o rio Vizela, ligando S. Martinho do Campo (Sto Tirso e Lordelo (Guimarães) e a ponte de Campelos.
  Como pontes românicas temos: a ponte de Roldes, em Caneiros,  a ponte da Pisca, em Creixomil, a ponte de Soeiro em Gondar e a ponte de Donim. A ponte do Arco, sobre o rio vizela, separando as freguesias de Serzedo (Guimarães) e Vila Fria (Felgueiras) é uma ponte românica, apresentando alguns sinais de romanidade, ou seja, blocos almofafados e marcas forfex, mas muito alterada em épocas posteriores. 
 A ponte de Serves, sobre o rio Ave, ligando Pedome (Famalicão) a Gondar (Guimarães), devido a restauro ficou muito adulterada, não permitindo um classificação segura.



Extrato retirado do livro do Autor: "Rede Viária Romana e Medieval do Concelho de Guimarães"
                                                                                           Narciso Machado

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Os Judeus em Guimarães



JUDEUS EM GUIMARÃES      
   
   1 - As origens da presença hebraica em Portugal

      São várias as lendas que pretendem explicar as origens do povo judeu na Península Ibérica, forjando um passado longínquo e heróico, extraído da história sagrada da Bíblia. O vínculo que liga os atuais judeus é a religião e as tradições e não propriamente de raça. Dos três nomes – Hebreus, Israelitas e Judeus – o primeiro nome é mais própriamente aplicado ao período em que tais gentes constituiram uma nação no pleno sentido da palavra, ou seja, no período anterior ao exílio da Babilónia (586 a. C.), constituindo a história Hebraica; o segundo nome adquiriu um significado quase exclusivamente religioso; e o terceiro nome é a designação adequada para incluir os dois aspetos dos Hebreus, como povo e como corpo religioso, correspondendo ao período posterior ao exílio da Babilónia, formando a história Judaica.
   Os primeiros judeus a chegar à Península seriam transportados por barcos fenícios logo após a conquista de Jerusalém por Nabucodonosor e a destruição do primeiro Templo Hebraico em 587 a. C integrados na diáspora forçada. Outros sustentam que a chegada de judeus à Península ocorreu após a destruição do segundo Templo de Jerusalém pelo imperador romano, Tito, no ano de 70 d. C.
 S. Paulo, na sua carta aos Romanos (15, 23-24), faz presumir a existência de colónias judaicas na península ibérica: “agora que terminei o meu trabalho nestas regiões, espero ir ter convosco (cristãos de Roma). “Irei visitar-vos quando for de viagem a Espanha”.
  Relativamente ao território português, existem alguns vestígios que comprovam a presença judaica entre nós.  Por exemplo, um conjunto de moedas encontradas perto de Mértola, em 1968, constituido “por onze meios-quadrantes, datáveis do período entre os anos 6 e 59 d. C.”, bem como uma pedra de anel com gravação de um Menorah e outros símbolos judaicos, peça encontrada nas ruinas da antiga cidade romana de Ammaia (Aramenha), perto de Marvão, Alentejo.
  Há cerca de 20 anos, foi encontrada em Mértola, a antiga Myrtilis, uma lápide funerária com uma inscrição, ornada por uma menorah gravada, com datação em língua e calendários latinos: 4 de Outubro de 482, que se encontra no museu de Mértola. E ainda duas lápides funerárias que se encontram no Museu Arqueológico do Carmo, de cerca do séc. VI, encontradas no cemitério judaico de Espiche, em Lagos (cf. Jorge Martins - Breve História dos Judeus em Portugal, Nova Vega - pags. 9-10). O jornal PÚBLICO, na edição de 30.03.12, dava notícia de ter sido descoberto, perto de Silves, mais um vestígio judaico. Trata-se, segundo os peritos que encontraram o achado, de uma placa de mármore, ao que tudo indica, terá sido uma placa funerária (40X60cm) e que data, no mínimo, do fim do sec. IV da nossa era. Tem uma inscrição com o nome “Yehiel” (um nome mencionado na Bíblia), seguido de uma série de letras cuja decifração total ainda está em curso. Porém, hastes de veado descobertas junto da lápide, que foram entretanto datadas por radiocarbono, remontam o achado ao ano 390 da era cristã, o que sugere que a lápide não pode ser posterior a essa data.
                                                         
                       2 - Os judeus desde o período medieval até ao sec. XXI

         Na Espanha muçulmana o número de judeus cresceu consideravelmente e tornaram-se aí notáveis pelo saber, bem como pela atividade industrial e comercial. Eram administradores financeiros, conselheiros, secretários, astrólogos e médicos dos governantes. Eram tolerados no exercício do culto. Esse período é considerado como a idade de ouro da literatura judaica. Apareceram entre eles poetas, oradores e filósofos. Entre eles se conservou a ciência astronómica de que mais tarde os Portugueses tirariam partido nas suas viagens de descobrimento.
        Antes da fundação do Reino, havia em várias cidades, como Santarém e Coimbra, bairros próprios de judeus ou judiarias, com as suas comunas e sinagogas. Na época medieval, Portugal garantia aos judeus mais protecção e segurança do que em qualquer outro país europeu.
       Duma maneira geral, os judeus foram aqui bem tratados durante a primeira dinastia, salvo no tempo de D. Afonso II (1211-1223) que decretou algumas restrições aos seus direitos. D. Afonso Henriques acolheu e favoreceu os judeus, utilizando-os para a formação dos quadros superiores da administração, sobretudo no sector do tesouro e cobrança de impostos. Após a conquista de Santarém deu três casais a um judeu e o filho deste, de nome Joseph Aben Yahia, foi nomeado almojarife-mor por D. Sancho I e a quem autorizou a organização da comuna dos judeus de Lisboa e a construção de sumptuosa sinagoga.
       D. Sancho I, filho de D. Afonso Henriques, seguiu a política de tolerância do pai, como revelam os documentos quando neles se dirige aos judeus ou muçulmanos, tratando-os por “meus judeus” e “meus mouros. O decreto de expulsão de 1496, transformado, pela força, em conversão geral no ano seguinte, fez com que Portugal se transformasse, de um país excepcionalmente tolerante, no contexto da Idade Média europeia, num país de uma única religião, exclusiva e repressiva e, portanto, num país que, com poucas excepções, não aceitava judeus declarados no seu solo.
        O ressurgimento das comunidades judaicas em Portugal ocorreu no início do sec. XVIII, em grande medida em consequência das condições proporcionadas pela legislação pombalina do último quartel do século anterior. A extinção da Inquisição em 1821 completaria ao ciclo de reconciliação lusa com os judeus. A primeira comunidade judaica a estabelecer-se foi a de Lisboa entre finais do sec. XVIII e início do sec. XIX, cujas primeiras famílias vieram de Gibraltar e Marrocos, sendo que apenas em 1912 a comunidade judaica foi reconhecida oficialmente pelo Governo da 1ª República. Enquanto a comunidade Israelita de Lisboa se legalizava, em 1912, assistia-se, nos anos 20 e 30 do século passado, à reconstituição de comunidades marranas no norte do país, com destaque para a comunidade de Belmonte, como a mais simbólica do país. Salienta-se a importante intervenção de Samuel Shwarz a recuperar as memórias judaicas dos criptojudeus, sobretudo com o seu livro “Os Cristãos-Novos em Portugal no sec. XX”, uma verdadeira bíblia para os marranos das Beiras. Outra personalidade importante para o ressurgimento judaico nas terras do interior transmontano e beirão foi Artur Carlos de Barros Basto (1887-1961) que, entre 1924 e 1934, liderou os destinos dos marranos portugueses, ou seja, os conversos que praticavam em segredo a religião judaica, fundando o instituto teológico israelita e a comunidade judaica do Porto. A sua “Obra do Resgate”, consistente em trazer para a luz do dia os criptojudeus descendentes dos antigos judeus forçados à conversão, terá produzido 27 centros criptojudaicos durante a primeira metade do século XX. Foi conhecido nos meios judaicos como o “Apóstolo dos Marranos”. Foi demitido do Exército por alegadamente ter participado nas cerimónias de circuncisão dos alunos do instituto teológico israelita do Porto, facto considerado “imoral”. Em 10 de Julho de 2012, a Assembleia da República (Resolução nº 119/2012) deliberou, por unanimidade de todos os partidos,  recomendar “ao Governo que proceda à reabilitação e reintegração no Exército, o capitão de infantaria Artur Carlos Barros Basto que foi alvo de segregação político-religiosa”.
       Com a subida de Hitler ao poder, na Alemanha, em 1933, a perseguição aos judeus europeus começou a ganhar contornos insustentáveis. É em 1942 que se iniciam as deportações para os campos de concentração, com vista à “solução final”, ou seja, com destino a um assassínio em massa, nas câmaras de gás. 
        Durante a II Guerra Mundial (1939-1945) merece destaque o então diplomata, em Bordeus, em França, Aristides de Sousa Mendes (1885-1854), pela ação filo-semita, através de concessão de vistos a judeus fugidos do regime nazi, contrariando ordens expressas de Salazar. Quando o exército alemão invadiu a França e provocou a fuga maciça para o ocidente de tanta gente – nomeadamente judeus -  Aristides de Sousa Mendes resolveu emitir vistos a quem procurava desesperadamente alcançar o país neutro e seguro que era Portugal.
        A sua ajuda humanitária a favor dos judeus e outros refugiados valeram-lhe um processo disciplinar, ordenado por Salazar, tendo-lhe sido aplicada a pena de demissão, sem direito a qualquer a reforma ou indemnização. Além disso, perdeu o direito de exercer a advocacia e ao uso da sua licença de condução, emitida no estrangeiro. Com uma família numerosa (doze filhos), sobreviveu graças à solidariedade da comunidade judaica em Lisboa, falecendo em extrema pobreza. Em 1998, a Assembleia da República e o Governo procederam à sua reabilitação.
        Outros diplomatas, embora com menor intervenção, merecem ser mencionados como filo-semitas: Veiga Simões (1888-1954) que exerceu funções diplomáticas, em Berlim, ente 1933-1940, concedendo alguns vistos sem autorização do MNE; Sampaio Garrido que exerceu funções em Budapeste desde 1939 e 1944, altura em que foi substituído por Teixeira Branquinho, que seguiu a política de proteção dos judeus do seu antecessor. Tal como estes, que concederam vistos e refúgio a muitos judeus e outros perseguidos, é digno de menção o Padre Joaquim Carreira cuja acção permitiu salvar vidas, mesmo que em menor número que os referidos diplomatas. O Padre Joaquim Carreira chegou à capital italiana a 4 de Maio de 1940, com 31 anos, para ocupar o cargo de vice-reitor do Colégio Pontifício Português. Porém, em 1941, com a morte do reitor, passaria a reitor interino. Num relatório que o Padre Carreira escreveu sobre a vida do referido colégio, referente ao ano letivo de 1943-1944, consta uma lista de 39 nomes de foragidos, sendo que existe pelo menos um depoimento de um dos refugiados que fala em 50 pessoas e outra testemunha em 42 pessoas. Entre nos 39 nomes da lista de refugiados encontram-se os nomes de Isacco, Elio e Roberto Cittone, identificados como “judeus” (cf. investigação do jornalista António Marujo, publicada na Revista 2 do Jornal PUBLICO, de 23.12.12). Seria importante fazer-se um estudo mais aprofundado com vista a levar, eventualmente, o Padre Joaquim Carreira a ser considerado “Justo entre as Nações”, título que o “Yad Vashem” (YV), o Memorial do Holocausto em Jerusalém, concede a pessoas que arriscaram a vida para salvar judeus durante o Holocausto.
         O historiador judeu, Avraham Milgram, do Museu do Holocausto Yad Vashem de Jerusalém, no seu livro sobre “Portugal, Salazar e os Judeus” (Gradiva, 2010, tradução de Lúcia Mucznit), a fls. 374, regista o seguinte:
1) - “De acordo com as fontes judaicas, passaram por Portugal, nessa época, cerca de 13.000 a 15.000 judeus. Menos de 20% destes, graças ao cônsul português, Aristides de Sousa Mendes;
 2) - À exceção de 1 ou 2 casos, o regime não entregou judeus aos nazis. Em contrapartida, Salazar podia ter salvado cerca de 4.303 judeus holandeses de origem portuguesa de serem deportados e não o fez;
3) - Dos judeus portugueses, na Grécia e na Turquia, que se encontravam sob ocupação nazi, Portugal acolheu 184 de França, no quadro de repatriamento dos seus cidadãos e nenhum da Grécia;
4) – Cerca de 1000 judeus húngaros receberam proteção de Portugal em Budapeste e salvaram-se;
5) – De Portugal foram enviadas quantidades consideráveis de mantimentos para judeus nos guetos e campos de concentração na Polónia, em França e em Theresienstadt;
6) – Cerca de 190 judeus portugueses, entre os quais 40 que estavam detidos no campo Vittel, e 150 judeus líbios de nacionalidade britânica chegaram a Lisboa durante o ano de 1944, a fim de serem trocados por alemães sob proteção britânica;
7) – Entre os anos de 1942-1945, algumas centenas de refugiados conseguiram emigrar de Portugal para a Palestina”.
    Os refugiados de Hitler em Portugal eram ajudados pela Comunidade Israelita de Lisboa, através da “Comissão de Assistência aos Refugiados”, criando a chamada Cozinha Económica Israelita.
   De acordo com o censo do Instituto Nacional de Estatística (INE), de 2001, disseram ser praticantes do judaísmo 1773 pessoas, espalhados um pouco por todo o país, com relevância para Lisboa (351), Porto (64), Belmonte (75), Algarve (78) e Guimarães (8). Mas, o número habitualmente referido é de cerca de 3.000 pessoas. Como lugares de culto, salientam-se a centenária sinagoga de Lisboa, denominada Shaaré Tikva” (Portas da Esperança) e a sinagoga do Porto chamada “Mekor Haim” (Fonte de Vida), inaugurada em 1938, para cuja fundação foi decisiva a intervenção de Barros Bastos.
   Uma referência especial à comunidade judaica de Belmonte que Samuel Shwarz, na sua obra “Os Cristãos Novos em Portugal no sec. XX”, classifica como “os ressuscitados das fogueiras da inquisição”, em virtude de terem mantido as tradições, ritos e orações desde o Édito de expulsão de D. Manuel I, em 1492.


                                         3-  Judeus em Guimarães


       Durante o longo reinado de D. Dinis, de 1279 a 1325, os documentos das chancelarias reais mencionam pela primeira vez comunidades judaicas organizadas, principalmente nas regiões fronteiriças (vg. Bragança, Chaves, Mogadouro, Castelo Rodrigo, Guarda, Monforte, Olivença). Em 1367, o número de localidades que abrigam comunidades judaicas organizadas atinge as trinta localidades. Segundo Carsten L. Wilke, “a partir de meados do sec. XIV, a demografia do judaísmo português sofre o impacto da imigração desencadeada pelas perseguições nos outros reinos ibéricos, com as matanças de Navarra de 1320 e 1328, pela peste negra de 1348 e pela guerra civil castelhana de 1366”. Graças a essa forte imigração, o número de comunidades judaicas em Portugal quase quintuplicou no sec. XV, para atingir um total de 139, número importante, mesmo se comparado com as 216 aljamas do reino de Castela (cf. História dos judeus Portugueses - Crasten L. Wilke- Edições 70 Lda., 2009-pag 20). As províncias de Trás-os-Montes e as Beiras abrigavam, por si só, metade das comunidades judaicas do reino.
      Em Guimarães, na Idade Média, existia a chamada Rua da Judiaria, a comprovar a existência de uma comunidade judaica local organizada, com sinagoga e forno privativo. A Drª. Maria da Conceição Falcão Ferreira identifica suficientemente o espaço ocupado pela comunidade judaica: “esse espaço “integrava toda a extensão de terreno, que, para sul, confrontava com as traseiras das casas da Rua da Forja (hoje Largo de João Franco), para oeste, e da Rua Escura, para leste, para além dos próprios quintais das casas de Val-de-Donas, a oeste, e os da rua de S . Tiago até aos Fornos, para leste” (cf. “Guimarães: Duas Villas, um só Povo”, 1250-1389, pags. 274-287). 
       A Rua da Judiaria medieval corresponde à atual Rua Dr. António da Mota Prego, que liga o largo João Franco à praça de Santiago. A comunidade Judaica usufruía de um espaço chamado Quintã dos Sapateiros que se estendia pelo antigo largo do Serralho e R. do Espírito Santo. A cadeia da Correição que existia no largo da Misericórdia, antes de ser presídio, foi sinagoga de judeus. Sabendo-se que os judeus tinham cemitério própria para os membros da sua comunidade, falta identificar o seu lugar. A. L. Carvalho, no seu estudo AMAP - Antigamente...1949, pag. 141 (Arquivo Alfredo Pimenta), apresenta os seguintes elementos, recolhidos nos registos notariais, comprovativos da existência de uma comunidade judaica em Guimarães:

   1359 – “Recolhimento da renda de um marividil anual imposto em sua casa sita na rua de Quintã dos Sapateiros na qual ora faziam oração os judeus”.
  1369 – “Da sua casa que eles tem e hão na judiaria da Vila de Guimarães que ora traz emprazada e em que viveu Isacc, frances judeu”
  1370 – “Emprazamento perpétuo da casa na Quintã dos Sapateiros, que ora é judiaria, feito pelo Cabido a mestre David, judeu, quitando-lhe o Cabido a renda em sua vida pelo serviço que dele recebe e espera continuar a receber”.
 1391 – “Emprazamento em três vidas de uma casa sita na rua da Judaria, ante a porta de Sinagoga.”
  1425 –“Emprazamento em três vidas de casas de Judaria, na Quintã dos Sapateiros, em que ora mora Isaac Marcos, judeu, orivez, feito pelo Cabido  mestre Marcos, judeu e mulher Ouro”.
  1460 – “Emprazamento em três vidas de casas na Judaria de Guimarães, a fundo da adega do Senhor Duque... feito pelo Cabido a Mosse Querido, judeu, tecelão e mulher Jamilla”.
  1500 – “Emprazamento de umas casas sitas na rua do Santo Espírito, que foi Judaria, junto à casa que foi snoga (Sinagoga) que arruinou, que foi a casa dos judeus”.
1503– “...quatro traves ou barrotes... as ques atravessam a rua pera casa dos presos que soya de ser snoga dos judeus”.”

A.L. Carvalho, citando o Abade de Tagilde apresenta os seguintes nomes judeus, encontrados também em diversos manuscritos (cf. Arq. Col. Guim. – Rev. de Guimarães):

“Raby Samuel (1351); Salomão Rande, alfaiate (1370); Jacob Damarante (1413); Rafaela (1424); Abraão Çàa Dyas (1426); Salomão Querido (1449); David Alles (1450); Isaac Lyvi (1460); Isaac Francos (1426); Jacho Erico (1435); Junça Luiz (1425); Samuel Montesinho (1485); Salomão Rauce (1487);  Oroza (1487); Isaac Baru (1488); Jacob Benaadeu (1425).

   E citando o Dr. Luis de Pina, acrescenta mais os seguintes nomes:
  
    Mestre Judas, Abaz e Aly, médicos do sec. XV, servindo o Duque de Guimarães (cf. Médicos Judeus, in Rev. de Guimarães).

    Em consequência da imigração dos judeus espanhóis devido à sua expulsão em 1496 pelos reis católicos, o bairro judeu de Guimarães acolheu o rabino Abraão Saba, de Zamora, conhecido pelas suas pregações na sinagoga, de que o comentário bíblico Tsror há-Mor (Feixe de Mirra) pode dar uma ideia. Abraão Saba, pregador em Guimarães, durante a última década do sec. XV, advertia a sua audiência contra “os encantos das jovens cristãs que, pavoneando-se às portas do gueto, se põem de emboscada na mira de almas inocentes”. Inversamente, as queixas das Cortes de 1481 dá-nos a imagem do judeu medieval, feito galhardo sedutor: “Vemos os judeus em cavalos e muares ricamente ajaezados, com lobas, capuzes finos e gibões de seda; trazem espadas douradas, toucas em rebuço, jaezes e guarnimentos de modo que é impossível serem conhecidos. Entram assim nas igrejas e escarnecem do Santo Sacramento e misturam-se com as cristãs em grave pecado contra a santa fé católica. Desta tão grande dissolução nascem ainda outros erros e culpas disformes e danosas ao corpo e à alma”.  
 Estas descrições dão a ideia de que em Portugal, as tensões entre as duas comunidades eram função de aproximação inquietante dos dois grupos, mais do que do antagonismo socio-cultural. (cf. História dos Judeus Portugueses - Carsten L. wilke - tradução de Jorge Fernando Campos da Costa- 2009- Edições 70, Lda- pags. 40 e 41).
   A. L. de Carvalho (em Antigamente…MCMXLIX), falando de “pirraças e maus tratos aos judeus”, dá-nos conta de conflitos entre a comunidade judaica e cristã de Guimarães: Nas Cortes de 1439, os procuradores de Guimarães levantam o caso, de um fidalgo truculento, de nome Rui Vaz que, entre outras ações más, usava dar pancada nos judeus e judias, “polla qual rezom os moradores da villa lhe nom queriam consentir quelle estivesse em ella”.
    Em 1440 voltam de novo os procuradores em Cortes a levantar queixas contra uma certa desigualdade de tratamento por parte do Juiz dos orfãos, quando julgava as demandas de judeus contra os cristãos. E foram a este respeito tomadas providências.
   Em 1434 el-rei D. Duarte, em Santarém, concede privilégios à comuna dos judeus de Guimarães (cf. Lº 1º de D. Duarte, fls. 8v, pag. 153). O Livro das Tenças d`El-Rei alude também à Judiaria de Guimarães.
  Guimarães recebeu Judeus expulsos de Castela, em 1492, que ficaram a residir no lugar de Estrepão, pertencente à freguesia de Creixomil. A cada novo endurecimento da opressão em Espanha afluiam refugiados a Portugal. Graças a essa forte imigração, o número de comunidades judaicas em Portugal quase quintuplicou no sec. XV, para atingir um total de 139, número importante, mesmo se comparado com as 216 aljamas do Reino de Castela, sendo que as províncias de Trás-os-Montes e das Beiras abrigavam por si só metade das comunidades de reino.
   Uma intolerante política religiosa manifestava-se através da chamada Judenga, realizada por ocasião da procissão do “Corpus Christi”. Segundo A. L. de Carvalho, tratava-se de “uma dança foliona, entrudesca, onde os comparsas fazendo momices metiam à chacota os costumes judaicos”. O ato final da Judenga realizava-se na Praça Maior, ao recolher da procissão, junto à igreja da Oliveira. Segundo os documentos da época (Arq. Mun., Livro das Provisões). O grupo da Judenga, formado por 15 a 20  homens e mulheres disfarçados com máscaras, subia ao alto da Igreja e daí, fazendo alusões a judeus da terra, citava o nome de alguns em voz alta e lendo “loas infamatórias”. No fim destas alusões, o grupo lançava da torre da igreja “uma bezerra por huma corda abaixo e estão todos de joelhos batendo nos peitos, fazendo muitas canções e cerimónias que, à vista da gente  insolente, pareciam verdadeiras”. À noite “voltavam os da Judenga, correndo as ruas e matraqueando às portas dos cristãos novos”. Uma petição dirigida a D. Isabel, filha de D. Jaime IV, Duque de Guimarães, com o objectivo de alcançar a proibição desta costumeira. Tal petição não obteve deferimento.
   Porém, em 1591, reinando D. Filipe I, foi publicada uma Provisão a proibir a Judenga, mas a Câmara não se conformou com tal proibição deduzindo embargos para o Corregedor que manteve a proibição. Contudo, num recurso para a Relação do Porto, a Câmara pede a manutenção da Judenga, alegando que dela não resultava nenhum escândalo, “antes era jogo que a todos aprazia e era antiquíssimo, de que estava em posse esta Vila. De tempo imemorial a esta parte, sem haver pessoa que do tal jogo se queixasse…e que todos os reis antepassados concederam muitos privilégios aos que entrassem na Judenga e festejassem com semelhante jogo as festas do ano, como até agora festejavam”. Mas, o maior argumento apresentado para a manutenção da Judenga era de que tal espectáculo prestava tributo à Santa Religião.
 Nas suas alegações, a Câmara alegava ainda que “era muito serviço de Nosso Senhor e bem da cristandade fazer-se a Judenga e nela representar suas superstições antigas e abusos judaicos para que, lembrados eles dos erros dos seus antepassados, pelos quaes foram queimados e sambenitados, não venham cair em outros semelhantes, e se envergonhassem deles e tenham por fé e creiam o que ensina a Santa Madre Igreja de Roma”.
    Em defesa da Judenga dizia-se ainda que com ela “não se pretende, nem pretenderá nunca, mais que tirar os abusos e superstições judaicas, que por nossos pecados havia hoje tantos na cristandade, pelo que era de presumir que os ditos cristãos novos…queriam hoje usar secretamente das ditas superstições judaicas em muito grave prejuízo da fé católico”.
Face esta alegações, por sentença de 6 de Julho de 1591, a Relação do Porto decidiu revogar a Provisão, mantendo a dança, o jogo e a diversão da Judenga.
  Porém, os cristãos novos não sossegaram, movendo influências para pôr fim ao desaforo de tão ridícula paródia. Mediante pedido de uma representação de mercadores judeus, uma Provisão de D. João IV pôs fim, definitivamente, a tal espetáculo.
                                                                                                Narciso machado                                                                                                                   

                         


                                   



Memórias do Tribunal da Relação de Guimarães


               Memórias do Tribunal da Relação de Guimarães


  


             1 - A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

Em meados da década de 1990, do século passado, começou a ganhar corpo a ideia no sentido da criação de novos tribunais da Relação, sem que daí resultasse o nascimento de novos distritos judiciais. Foi então decidido pelo Governo, sendo então ministro da Justiça o dr. Vera Jardim, do Partido Socialista, que as cidades contempladas para as respetivas sedes dos Tribunais a criar, seriam Guimarães e Faro (DL 186-A/99, de 31.05). A notícia encheu a alma dos vimaranenses, aliás sempre atentos a tudo aquilo que poderá engrandecer e prestigiar ainda mais a sua terra.
       Na sequência de tal decisão, o Regulamento da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (DL 186-A/99 de 31.05) criou os Tribunais da Relação de Guimarães e Faro, justificadas pelo movimento processual dos tribunais das áreas de competência territorial que lhes são atribuídas. Porém, o Tribunal da Relação de Guimarães teve uma outra justificação, ou seja, permitir ainda melhores condições de trabalho ao Tribunal da Relação do Porto, agravadas pela exiguidade das suas instalações.
      O Município de Guimarães não perdeu tempo adquirindo, para o efeito, um palacete degradado, mandado construir, entre 1747 e 1748, com dinheiros pessoais, pelo então arcebispo de Braga, D. José Bragança, para sua residência. A mudança de residência do arcebispo teve a ver com uma revolta do Cabido da Sé de Braga contra ele, facto que, depois de mandar prender 17 cónegos, o levou a abandonar Braga, por algum tempo, regressando apôs reconciliação com o Cabido.
     “Pouco depois, a 6 de Janeiro de 1749, D. José de Bragança doou o palacete ao seu estribeiro-mor, em agradecimento da sua dedicação. Este, depois da morte do arcebispo, doou o palacete à Congregação dos Padres da Missão de S. Vicente de Paulo que por sua vez o vendeu, em 1797, por 12 mil cruzados, a João do Couto Ribeiro de Abreu, fidalgo da casa de El-Rei, cujos descendentes o possuíram até 1979, altura em que sua bisneta, D. Amélia Pereira Leite de Magalhães e Couto legou a raiz do prédio à Congregação dos Padres Redentoristas, passando depois para outros proprietários e destes para a Câmara Municipal de Guimarães, para instalação do Tribunal da Relação”. (cf. Guimarães – Património Cultural da Humanidade – CEC -2012- pag. 65 - António Carlos de Azeredo- ed. Caminhos Romanos).
   O edifício, também conhecido por “Casa dos Coutos”, nome da referida família nobre dos Coutos, está situado em pleno Centro Histórico, classificado pela Unesco, a 13.1201, como Património da Humanidade. Aliás, o brasão dos Coutos está representado no teto de um dos salões do palacete, bem como por cima das duas portas de entrada do palacete: uma que deita para o Largo da Misericórdia (Largo João Franco) e outra para a Rua da Rainha. 
     De seguida, a Câmara de Guimarães, em março de 2000, celebra um protocolo que teve por objeto ”a cedência de instalações e a execução de obras no edifício por forma a recuperar-lhe a dignidade e o valor arquitetónico e adaptá-lo à instalação de um tribunal superior.
     A obra de recuperação do edifício e a instalação do novo Tribunal da Relação conquistou para a cidade e para toda a área dos círculos Judiciais de Barcelos, Braga, Guimarães e Viana do Castelo, uma valência judicial considerável, para cujo território o novo Tribunal da Relação tem competência, em matéria cível e penal.
    Assim, a área de jurisdição do TRG, em matéria cível e penal, passou a abranger os círculos Judiciais de Barcelos (Esposende), Braga (Vila Verde, Amares, Póvoa de Lanhoso e Vieira do Minho), Guimarães (Fafe, Felgueiras, Cabeceiras de Basto e Celorico) e Viana do Castelo (Ponte de Lima, Ponte da Barca, Arcos de Valdevez, Paredes de Coura, Vila Nova de Cerveira, Caminha, Monção, Melgaço e Valença).
 O Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) foi inaugurado no dia 19 de Setembro de 2001, tendo a sua instalação definitiva ocorrido no dia 2 de Abril de 2002, data em que tomaram posse os 12 juízes (7 efetivos e 5 auxiliares), bem como o representante do Ministério Público, junto do Tribunal.
      Deste modo, a Justiça passou a contribuir também, a partir de então, para a preservação, valorização e vivificação do Centro Histórico de Guimarães, fazendo uma ligação às suas origens, já que Guimarães é também o berço do direito português.
        O direito é uma realidade que pertence ao mundo da cultura, ao mundo do espírito, ao mundo histórico, à esfera do construído, daquilo que o homem faz, em que projeta o seu espírito, deposita intenções significativas ou encarna valores. A definição do direito como produto de um processo cultural liga-o também “a todos os tipos de realização da cultura – religiosos, éticos artísticos. Porque o direito se apresenta como um dos aspetos do sedimento cultural de uma comunidade, de um povo ou de uma sociedade menor. As normas jurídicas, ao menos nos seus traços gerais, hão-de refletir, as crenças, as convicções profundas, a vocação artística da comunidade respetiva, constituindo, ao mesmo tempo, condicionantes e resultantes do processo cultural dessa comunidade” (cf. Filosofia do Direito – Soares Martinez – pag. 402 – Almedina). 
    Por isso, a escolha de Guimarães, berço da nacionalidade e do direito português, para sede do novo Tribunal da Relação, foi também um ato de cultura, como fator essencial, na definição da identidade da cidade e do país.
       A instalação do Tribunal esteve a cargo do Tribunal da Relação do Porto, sendo seu presidente o dr. José Ferreira Correia de Paiva, mas Noronha do Nascimento e Lázaro Faria apresentaram-se como únicos juízes a desempenhar tais funções, criando a falsa ideia de que essas tarefas lhes tinham sido atribuídas pelo Conselho Superior da Magistratura, composto por 17 elementos (2 designados pelo Presidente da República, 7 pela Assembleia da República, 7 juízes eleitos pelos seus pares e presidido pelo Presidente do STJ, cargo que na altura era desempenhado pelo dr. Aragão Seia).
     Na criação do novo Tribunal da Relação Guimarães é de realçar a contribuição da Delegação de Guimarães da Ordem dos Advogados, sendo seus dirigentes, primeiro, o dr. Gama Lobo Xavier e depois a drª. Maria Manuel Carvalho (já falecida) e primeira mulher advogada em Guimarães.    
    Trata-se de dois causídicos que dedicaram a sua vida profissional à defesa da justiça e do Estado de Direito e, por isso, conquistaram pelo trabalho, maturidade e pelo muito que fizeram pela sociedade, um lugar proeminente na história da advocacia vimaranense.
    Outros do mesmo nível inteletual e profissional, e já falecidos, merecem aqui a sua recordação. Saliento aqueles com quem tive a oportunidade de trabalhar e que já partiram: os drs. Salgado Lobo, Felisberto Leite, José Augusto da Silva, Maria Manuel de Carvalho, A. Pereira Coelho, Arnaldo Martins Gouveia, Armando Coimbra, Armando José Andrade, João Fernandes, João Bastos e Francisco César Carvalho.
     Todos participaram na administração da justiça daqueles que lhes confiaram a defesa e a afirmação dos seus direitos e liberdades, uma condição essencial para a garantia do Estado de Direito.


                                     2 - Um livro à medida da encomenda

       No mês de setembro de 2012, ocorreu no Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) o lançamento de um livro sobre “As Memórias da Primeira Década do TRG”, escrito pelo dr. Lino Moreira da Silva. Pelos vistos, a obra “teve origem num convite efetuado pelo dr. António Gonçalves, na altura Juiz desembargador e presidente do TRG. A aceitação do convite teve como motivos, segundo o dr. Moreira da Silva, a “relação de amizade para com o Juiz António Gonçalves e a relevância e a pertinência que encontrou no projecto, embora consciente das dificuldades inerentes ao que lhe era pedido” (cf. pag. 37). Era suposto que o dr. Moreira da Silva, embora sem formação jurídica e na área da organização dos Tribunais, tendo aceite o convite, atuasse como homem independente e isento, na elaboração do livro. Mas não. Enveredou pelo cumprimento do tal projeto que lhe foi encomendado.
      Entre os temas abordados no livro, ressalta a eleição para primeiro presidente do Tribunal, tendo-se limitado a registar que “no dia 5 de Abril de 2002, uma sexta feira, 12 juízes do Tribunal procederam à eleição do presidente e por voto secreto, foi eleito o dr. Lázaro Faria”. Curiosamente, refere-se no livro que a “assembleia eleitoral teve a assessoria da Juíza Desembargadora Rosa Oliveira Tching, tendo a ata sido elaborada pelo Secretário do Tribunal”, que, pasme-se, nem sequer esteve presente ao ato eleitoral por decisão do dr. Lázaro Faria, já que a eleição ocorreu à porta fechada numa das salas da Relação e num café das imediações do Tribunal.
       O escritor do livro silenciou o circunstancionalismo que envolveu a falsa “eleição” de Lázaro Faria, facto que era ou deveria ser do conhecimento do escritor do livro, porquanto dele dei conhecimento público através do Jornal Público (edição de 2.11.2009) e Notícias de Guimarães (edições de 24.4.2009 e 6.5.2011).
      Além disso, o dr. Moreira da Silva, uma vez que aceitou a “encomenda”, tinha o dever de registar no livro, à semelhança de vários outros documentos, um importante ofício que prova, só por si e inequivocamente, a trama de Lázaro Faria. Refiro-me ao ofício enviado pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) aos 12 juízes, recebido depois da falsa “eleição” de Lázaro Faria, no qual se diz que“ por deliberação do Plenário do CSM tinha sido nomeada uma Comissão que deveria ser integrada pelos três juízes Desembargadores mais antigos dos movimentados para o TRG, para preparar e efectuar as eleições para presidente”. Não conhecendo o teor deste ofício, os juízes estavam convencidos que o dr. Lázaro Faria tinha poderes para promover, sozinho, as eleições, já que segundo ele, tinha sido encarregado dessa tarefa pelo dr. Noronha do Nascimento, então vice–presidente do CSM. A tudo isto opuseram-se, em vão, três Juízes, em sete efectivos (Aníbal Jerónimo, Gomes da Silva e eu próprio), que desejavam que o Plenário do CSM nomeasse um juiz, fora do elenco dos 12 juízes, para presidir provisoriamente ao TRG até ao fim das férias judiciais (Outubro), altura em que o quadro de juízes estaria completo, procedendo-se então a eleições livres, conscientes e responsáveis, já que vários dos juízes nem sequer se conheciam. Porém, Lázaro Faria tinha pressa e por sua conta e risco, marcou as eleições para o dia 5.4.2002, com conhecimento do dr. Noronha do Nascimento que ocultou estes factos aos restantes elementos do CSM. Apesar desta fraude eleitoral, as eleições não foram realizadas e Lázaro Faria exerceu o cargo, como se nada tivesse acontecido e nunca a deliberação do Plenário do CSM foi cumprida, certamente por tais factos terem sido ocultados ao Plenário do CSM.
      Estes factos fazem parte da memória do TRG e, por isso, impunha-se o seu registo no livro de memórias, o que, incompreensivelmente, não aconteceu. O dr. Lino Moreira da Silva nem sequer se dignou ouvir os juízes que estiveram na origem da criação do TRG, nomeadamente os sete efetivos que teriam, certamente, muito a esclarecer. Em vez desses juízes, foram ouvidas pessoas que nada têm a ver com a criação e funcionamento do TRG como, por exemplo, os presidentes da Relação do Porto, Coimbra e Évora.
    O presidente da Relação do Porto, dr. José António de Sousa Lameira, até defende a extinção do TRG.  Na “Saudação” que escreve, a fls. 31, no livro de Lino Moreira da Silva (pelos vistos a convite de António Gonçalves) louva o novo tribunal da Relação de Guimarães. Porém, o mesmo José António de Sousa Lameira, passado pouco tempo, segundo o jornal Público (edição de 07.11.12), numa exposição à Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, a propósito da reforma do Mapa Judiciário, defende a extinção da Relação de Guimarães, em favor do alargamento da área de jurisdição do Tribunal da Relação do Porto.
     Esclarece-se que também os drs. Noronha do Nascimento e Lázaro Faria sempre foram contra a criação do Tribunal da Relação de Guimarães. Lázaro Faria chegou mesmo a sugerir a subscrição de um baixo assinado, a enviar ao CSM e ministro da Justiça, para evitar a sua instalação, facto que rejeitei liminarmente.    
     Ao silenciar estes factos, o dr. Moreira da Silva juntou-se ao grupo daqueles que pretendem branquear o que de grave se passou no início do funcionamento do TRG, não escrevendo toda a verdade, preferindo aceitar o “cozinhado” do dr. António Gonçalves.
    Outro facto incompreensível é o silenciamento total a respeito da intervenção da Delegação da Ordem dos Advogados de Guimarães, relativamente à sua intervenção na criação do TRG. Trata-se de um erro grave, injusto e ofensivo a toda uma classe. A desejável visibilidade e o escrutínio público da justiça assumem um caráter essencial na sua legitimidade democrática.

                      
                                                3 - A fraude eleitoral

     Como vimos o Tribunal da Relação de Guimarães foi criado pelo DL 186-A/99, de 31.05. Invocando, falsamente, ser o único “responsável” na promoção da primeira eleição do presidente do Tribunal, apresentou-se o juiz Lázaro Faria, alegando que tal cargo lhe havia sido atribuído pelo dr. Noronha do Nascimento, então presidente do STJ e, por inerência, vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM). A posse dos 7 juízes efetivos e 5 auxiliares foi designada para o dia 12.03.2002 – data que Lázaro Faria levou ao conhecimento dos colegas por telefone – informando ainda que haveria um almoço no restaurante Batista, em Guimarães, seguido de uma reunião no edifício do Tribunal, para que nela fosse eleito o presidente da Relação, nesse mesmo dia da posse. Nesta reunião, perante a oposição firma de três colegas efetivos (Aníbal do Nascimento Rodrigues Jerónimo, António Fernando Gomes da Silva e eu próprio) decidiu Lázaro Faria, designar as eleições para 15 ou 20 dias depois, mesmo contra a vontade dos três juízes também candidatos que desejavam um prazo muito mais alargado, sugerindo que as eleições se realizassem no fim das féria judiciais (Outubro), altura em que o quadro dos juízes estaria completo. Até a essa data, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) nomearia uma presidência provisória exercida por um juiz recrutado fora do elenco dos 12 juízes nomeados para a Relação.
      Pretendiam os três juízes eleições livres, conscientes e responsáveis. Para isso, era preciso tempo suficiente para os candidatos exporem as suas ideias, relativamente ao exercício do cargo e para que os eleitores conhecessem melhor os candidatos, uma vez que a maior parte deles nem sequer se conheciam. Porém, o juiz Lázaro Faria não atendeu tal requerimento e designou as eleições para o dia 05.04.20202, certamente por receio da vinda de mais juízos efetivos, em Outubro, altura em que o quadro de juízes ficaria completo.
  Chegado o dia, à porta fechada, o juiz Lázaro Faria, num quadro de falsidade eleitoral, colocou a presidir ao “ato eleitoral”, o dr. António Joaquim Teixeira Mendes, secretariado pela Juíza auxiliar, drª Maria Rosa Oliveira Tching, tornando-se ambos, deste modo, cúmplices desta fraude. Apesar de não estar presente, a ata, inexplicavelmente, vem assinada pelo Secretário do Tribunal.
     Uma caixa de papelão iria servir de urna improvisada por Lázaro Faria, pois não permitiu a presença de qualquer funcionário, incluindo o próprio secretário do Tribunal. Porém, antes do depósito dos votos na urna improvisada por Lázaro Faria, um dos juízes auxiliares sugeriu que se suspendesse o “ato eleitoral”, para, segundo afirmou, decidirem num café, situado nas imediações do Tribunal, qual o candidato a escolher, enquanto os restantes três juízes, não apoiantes de Lázaro Faria e também candidatos (Aníbal do Nascimento Rodrigues Jerónimo, António Fernando Gomes da Silva e eu próprio) aguardaram, na “sala eleitoral”, o início da votação.
   Regressados do café, foi efetuada a votação e após o resultado eleitoral, favorável a Lázaro Faria, os 12 juízes tinham nos seus gabinetes um ofício do Conselho Superior da Magistratura (CSM) a nomear uma Comissão para preparar e efetivar as eleições do Presidente da Relação de Guimarães. Esse ofício, datado de 22-03.02, subscrito pelo juiz secretário do CSM é do seguinte teor: “Tenho a honra de comunicar a Vª Exª que, por despacho do Exmo Vice-Presidente deste Conselho, no uso da competência delegada, foram nomeados para integrarem a Comissão Eleitoral que irá preparar e efectivar as eleições para Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, os três Juízes Desembargadores mais antigos dos movimentados para aquele Tribunal, por deliberação de 12.03.02, do Plenário do Conselho Superior da Magistratura”.
    Perante o teor do ofício, logo concluímos termos caído num logro. Daqui resulta que a eleição levada a cabo, apressadamente, por iniciativa do juiz candidato Lázaro Faria, fazendo supôr junto dos colegas que tinha poderes para tal e com conhecimento de Noronha do Nascimento, configura um comportamento altamente censurável, disciplinar e criminalmente, e violador dos princípios mais elementares da ética e da democracia.    
     Estranhamente, na sequência de tal ofício, a eleição ordenada pelo Plenário do CSM não foi realizada e Lázaro Faria auto-elegeu-se deste modo, bizarro e fraudulento, presidente da Relação de Guimarães. E foi Lázaro Faria que, poucos dias depois, sem poderes para tal, deu posse ao vice-presidente António da Silva Gonçalves, que por isso mesmo exerceu também ele o cargo ilegalmente. Sempre estive convencido que todos os elementos do Plenário do CSM estavam ao corrente dos factos desde o primeiro momento, pensando inclusivamente que iriam ser instaurados, oficiosamente, os respetivos processos disciplinares aos responsáveis, pelo que fui aguardando o desfecho da situação. Suspeitando que qualquer coisa não estava certa, resolvi enviar ao Plenário do CSM uma exposição sobre os factos. Foi então que recebi um ofício do Plenário do CSM a lamentar o envio tardio da minha exposição, certamente por ter passado o prazo do procedimento disciplinar.
    Com esta resposta do Plenário do CSM, ficou-se a saber que Noronha do Nascimento, então vice-presidente do CSM, tinha ocultado a sua conduta e a de Lázaro Faria aos restantes 16 elementos do Conselho, como o comprova a resposta que recebi à referida exposição sobre a matéria.
    Um imperativo de ordem legal, moral e, para memória futura, importa levar ao conhecimento dos cidadãos em nome de quem os juízes, constitucionalmente, aplicam a justiça, e perante quem, em última instância, devem prestar contas do modo como exercem a sua profissão.
     Uma última referência vai para os discursos laudatórios de Noronha do Nascimento, Lázaro Faria e António Gonçalves que se encontram em anexo ao livro de “Memórias do TRG”, de Lino Moreira da Silva. Trata-se de música celestial para dar a ideia de virtudes e qualidades que não existem, de peças cujos conteúdos devem dizer respeito a outra justiça, que não a portuguesa. Certamente não têm sido os juízes de conduta digna que tem conduzido à degradação da imagem da justiça junto dos portugueses, atualmente com registos negativos em todos inquéritos de opinião, surgindo em último lugar, quando, pela natureza da profissão, os juízes tinham o dever especial de estar na primeira posição.
     Uma leitura do livro “Justiça à Portuguesa”, de Fernando e Mário Contumélias (2009-Publicações Dom Quixote), onde se encontram os testemunhos do então bastonário da Ordem dos Advogados, dr. Marinho Pinto, e de várias outras personalidades acerca da justiça, são suficientes para tirar as teias de aranha dos olhos de Lázaro Faria e Noronha do Nascimento. E foi este exemplar, Noronha do Nascimento, que o presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, condecorou por ocasião das comemorações do 10 de Junho de 2013.
   A conduta censurável dos juízes, Lázaro Faria e Noronha do Nascimento, sem qualquer procedimento disciplinar e criminal, a não realização das eleições de acordo com a deliberação do plenário do CSM, bem como a discordância relativamente aos julgamentos dos recursos quando era necessária ouvir a gravação da prova (sendo ouvida apenas pelo relator, quando entendia que deveria ser ouvida pelos três juízes) levaram-me a requerer a jubilação, quando poderia ter dado mais alguns anos do meu trabalho à justiça. Não era aquela a justiça que idealizava.    
                               
            Extrato do livro do Autor: “Memórias do Tribunal da Relação – Reposição da Verdade”

                                                         Narciso Machado