JUDEUS EM GUIMARÃES
1 - As origens da presença hebraica em Portugal
São várias as lendas que pretendem
explicar as origens do povo judeu na Península Ibérica, forjando um passado
longínquo e heróico, extraído da história sagrada da Bíblia. O vínculo que liga
os atuais judeus é a religião e as tradições e não propriamente de raça. Dos
três nomes – Hebreus, Israelitas e Judeus
– o primeiro nome é mais própriamente aplicado ao período em que tais
gentes constituiram uma nação no pleno sentido da palavra, ou seja, no período
anterior ao exílio da Babilónia (586 a. C.), constituindo a história Hebraica;
o segundo nome adquiriu um significado quase exclusivamente religioso; e o
terceiro nome é a designação adequada para incluir os dois aspetos dos Hebreus,
como povo e como corpo religioso, correspondendo ao período posterior ao exílio
da Babilónia, formando a história Judaica.
Os primeiros judeus a chegar à Península
seriam transportados por barcos fenícios logo após a conquista de Jerusalém por
Nabucodonosor e a destruição do primeiro Templo Hebraico em 587 a. C integrados
na diáspora forçada. Outros sustentam que a chegada de judeus à Península
ocorreu após a destruição do segundo Templo de Jerusalém pelo imperador romano,
Tito, no ano de 70 d. C.
S. Paulo, na sua carta aos Romanos (15,
23-24), faz presumir a existência de colónias judaicas na península ibérica: “agora que terminei o meu trabalho nestas
regiões, espero ir ter convosco (cristãos de Roma). “Irei visitar-vos quando
for de viagem a Espanha”.
Relativamente ao território português, existem alguns vestígios que
comprovam a presença judaica entre nós.
Por exemplo, um conjunto de moedas encontradas perto de Mértola, em
1968, constituido “por onze meios-quadrantes, datáveis do período entre os anos
6 e 59 d. C.”, bem como uma pedra de anel com gravação de um Menorah e outros
símbolos judaicos, peça encontrada nas ruinas da antiga cidade romana de Ammaia
(Aramenha), perto de Marvão, Alentejo.
Há cerca de 20 anos, foi encontrada em
Mértola, a antiga Myrtilis, uma lápide funerária com uma inscrição, ornada por
uma menorah gravada, com datação em
língua e calendários latinos: 4 de
Outubro de 482, que se encontra no museu de Mértola. E ainda duas lápides
funerárias que se encontram no Museu Arqueológico do Carmo, de cerca do séc.
VI, encontradas no cemitério judaico de Espiche, em Lagos (cf. Jorge Martins -
Breve História dos Judeus em Portugal, Nova Vega - pags. 9-10). O jornal
PÚBLICO, na edição de 30.03.12, dava notícia de ter sido descoberto, perto de
Silves, mais um vestígio judaico. Trata-se, segundo os peritos que encontraram
o achado, de uma placa de mármore, ao que tudo indica, terá sido uma placa
funerária (40X60cm) e que data, no mínimo, do fim do sec. IV da nossa era. Tem
uma inscrição com o nome “Yehiel” (um nome mencionado na Bíblia), seguido de
uma série de letras cuja decifração total ainda está em curso. Porém, hastes de
veado descobertas junto da lápide, que foram entretanto datadas por
radiocarbono, remontam o achado ao ano 390 da era cristã, o que sugere que a
lápide não pode ser posterior a essa data.
2 - Os judeus desde o período medieval até ao sec. XXI
Na Espanha muçulmana o número de
judeus cresceu consideravelmente e tornaram-se aí notáveis pelo saber, bem como
pela atividade industrial e comercial. Eram administradores financeiros,
conselheiros, secretários, astrólogos e médicos dos governantes. Eram tolerados
no exercício do culto. Esse período é considerado como a idade de ouro da
literatura judaica. Apareceram entre eles poetas, oradores e filósofos. Entre
eles se conservou a ciência astronómica de que mais tarde os Portugueses
tirariam partido nas suas viagens de descobrimento.
Antes da fundação do Reino, havia em
várias cidades, como Santarém e Coimbra, bairros próprios de judeus ou
judiarias, com as suas comunas e sinagogas. Na época medieval, Portugal
garantia aos judeus mais protecção e segurança do que em qualquer outro país
europeu.
Duma maneira geral, os judeus foram aqui
bem tratados durante a primeira dinastia, salvo no tempo de D. Afonso II
(1211-1223) que decretou algumas restrições aos seus direitos. D. Afonso Henriques
acolheu e favoreceu os judeus, utilizando-os para a formação dos quadros
superiores da administração, sobretudo no sector do tesouro e cobrança de
impostos. Após a conquista de Santarém deu três casais a um judeu e o filho
deste, de nome Joseph Aben Yahia, foi nomeado almojarife-mor por D. Sancho I e
a quem autorizou a organização da comuna dos judeus de Lisboa e a construção de
sumptuosa sinagoga.
D. Sancho I, filho de D. Afonso
Henriques, seguiu a política de tolerância do pai, como revelam os documentos
quando neles se dirige aos judeus ou muçulmanos, tratando-os por “meus judeus” e “meus mouros. O decreto de expulsão de 1496, transformado, pela
força, em conversão geral no ano seguinte, fez com que Portugal se
transformasse, de um país excepcionalmente tolerante, no contexto da Idade
Média europeia, num país de uma única religião, exclusiva e repressiva e,
portanto, num país que, com poucas excepções, não aceitava judeus declarados no
seu solo.
O ressurgimento das comunidades judaicas
em Portugal ocorreu no início do sec. XVIII, em grande medida em consequência
das condições proporcionadas pela legislação pombalina do último quartel do
século anterior. A extinção da Inquisição em 1821 completaria ao ciclo de
reconciliação lusa com os judeus. A primeira comunidade judaica a
estabelecer-se foi a de Lisboa entre finais do sec. XVIII e início do sec. XIX,
cujas primeiras famílias vieram de Gibraltar e Marrocos, sendo que apenas em
1912 a comunidade judaica foi reconhecida oficialmente pelo Governo da 1ª
República. Enquanto a comunidade Israelita de Lisboa se legalizava, em 1912,
assistia-se, nos anos 20 e 30 do século passado, à reconstituição de
comunidades marranas no norte do país, com destaque para a comunidade de
Belmonte, como a mais simbólica do país. Salienta-se a importante intervenção
de Samuel Shwarz a recuperar as memórias judaicas dos criptojudeus, sobretudo
com o seu livro “Os Cristãos-Novos em Portugal no sec. XX”, uma verdadeira
bíblia para os marranos das Beiras. Outra personalidade importante para o
ressurgimento judaico nas terras do interior transmontano e beirão foi Artur Carlos de Barros Basto (1887-1961)
que, entre 1924 e 1934, liderou os destinos dos marranos portugueses, ou seja,
os conversos que praticavam em segredo a religião judaica, fundando o instituto
teológico israelita e a comunidade judaica do Porto. A sua “Obra do Resgate”, consistente em trazer
para a luz do dia os criptojudeus descendentes dos antigos judeus forçados à
conversão, terá produzido 27 centros criptojudaicos durante a primeira metade
do século XX. Foi conhecido nos meios judaicos como o “Apóstolo dos Marranos”.
Foi demitido do Exército por alegadamente ter participado nas cerimónias de
circuncisão dos alunos do instituto teológico israelita do Porto, facto
considerado “imoral”. Em 10 de Julho de 2012, a Assembleia da República
(Resolução nº 119/2012) deliberou, por unanimidade de todos os partidos, recomendar “ao Governo que proceda à
reabilitação e reintegração no Exército, o capitão de infantaria Artur Carlos
Barros Basto que foi alvo de segregação político-religiosa”.
Com a subida de Hitler ao poder, na
Alemanha, em 1933, a perseguição aos judeus europeus começou a ganhar contornos
insustentáveis. É em 1942 que se iniciam as deportações para os campos de
concentração, com vista à “solução final”, ou seja, com destino a um assassínio
em massa, nas câmaras de gás.
Durante a II Guerra Mundial (1939-1945)
merece destaque o então diplomata, em Bordeus, em França, Aristides de Sousa Mendes (1885-1854), pela ação filo-semita,
através de concessão de vistos a judeus fugidos do regime nazi, contrariando
ordens expressas de Salazar. Quando o exército alemão invadiu a França e
provocou a fuga maciça para o ocidente de tanta gente – nomeadamente judeus
- Aristides de Sousa Mendes resolveu
emitir vistos a quem procurava desesperadamente alcançar o país neutro e seguro
que era Portugal.
A sua ajuda humanitária a favor dos
judeus e outros refugiados valeram-lhe um processo disciplinar, ordenado por
Salazar, tendo-lhe sido aplicada a pena de demissão, sem direito a qualquer a
reforma ou indemnização. Além disso, perdeu o direito de exercer a advocacia e
ao uso da sua licença de condução, emitida no estrangeiro. Com uma família
numerosa (doze filhos), sobreviveu graças à solidariedade da comunidade judaica
em Lisboa, falecendo em extrema pobreza. Em 1998, a Assembleia da República e o
Governo procederam à sua reabilitação.
Outros diplomatas, embora com menor
intervenção, merecem ser mencionados como filo-semitas: Veiga Simões (1888-1954) que exerceu funções diplomáticas, em
Berlim, ente 1933-1940, concedendo alguns vistos sem autorização do MNE; Sampaio Garrido que exerceu funções em
Budapeste desde 1939 e 1944, altura em que foi substituído por Teixeira
Branquinho, que seguiu a política de proteção dos judeus do seu antecessor. Tal
como estes, que concederam vistos e refúgio a muitos judeus e outros
perseguidos, é digno de menção o Padre
Joaquim Carreira cuja acção permitiu salvar vidas, mesmo que em menor
número que os referidos diplomatas. O Padre Joaquim Carreira chegou à capital
italiana a 4 de Maio de 1940, com 31 anos, para ocupar o cargo de vice-reitor
do Colégio Pontifício Português. Porém, em 1941, com a morte do reitor, passaria
a reitor interino. Num relatório que o Padre
Carreira escreveu sobre a vida do referido colégio, referente ao ano letivo
de 1943-1944, consta uma lista de 39 nomes de foragidos, sendo que existe pelo
menos um depoimento de um dos refugiados que fala em 50 pessoas e outra
testemunha em 42 pessoas. Entre nos 39 nomes da lista de refugiados
encontram-se os nomes de Isacco, Elio e
Roberto Cittone, identificados como “judeus” (cf. investigação do
jornalista António Marujo, publicada na Revista 2 do Jornal PUBLICO, de
23.12.12). Seria importante fazer-se um estudo mais aprofundado com vista a
levar, eventualmente, o Padre Joaquim
Carreira a ser considerado “Justo
entre as Nações”, título que o “Yad Vashem” (YV), o Memorial do Holocausto em Jerusalém, concede a pessoas que
arriscaram a vida para salvar judeus durante o Holocausto.
O historiador judeu, Avraham Milgram,
do Museu do Holocausto Yad Vashem de Jerusalém, no seu livro sobre “Portugal, Salazar e os Judeus” (Gradiva,
2010, tradução de Lúcia Mucznit), a fls. 374, regista o seguinte:
1) - “De
acordo com as fontes judaicas, passaram por Portugal, nessa época, cerca de
13.000 a 15.000 judeus. Menos de 20% destes, graças ao cônsul português, Aristides de Sousa Mendes;
2) - À exceção de 1 ou 2 casos, o regime não
entregou judeus aos nazis. Em contrapartida, Salazar podia ter salvado cerca de
4.303 judeus holandeses de origem portuguesa de serem deportados e não o fez;
3) - Dos
judeus portugueses, na Grécia e na Turquia, que se encontravam sob ocupação
nazi, Portugal acolheu 184 de França, no quadro de repatriamento dos seus
cidadãos e nenhum da Grécia;
4) – Cerca de
1000 judeus húngaros receberam proteção de Portugal em Budapeste e salvaram-se;
5) – De
Portugal foram enviadas quantidades consideráveis de mantimentos para judeus
nos guetos e campos de concentração na Polónia, em França e em Theresienstadt;
6) – Cerca de
190 judeus portugueses, entre os quais 40 que estavam detidos no campo Vittel,
e 150 judeus líbios de nacionalidade britânica chegaram a Lisboa durante o ano
de 1944, a fim de serem trocados por alemães sob proteção britânica;
7) – Entre os
anos de 1942-1945, algumas centenas de refugiados conseguiram emigrar de
Portugal para a Palestina”.
Os refugiados de Hitler em Portugal eram
ajudados pela Comunidade Israelita de Lisboa, através da “Comissão de
Assistência aos Refugiados”, criando a chamada Cozinha Económica Israelita.
De acordo com o censo do Instituto Nacional
de Estatística (INE), de 2001, disseram ser praticantes do judaísmo 1773
pessoas, espalhados um pouco por todo o país, com relevância para Lisboa (351),
Porto (64), Belmonte (75), Algarve (78) e Guimarães (8). Mas, o número
habitualmente referido é de cerca de 3.000 pessoas. Como lugares de culto,
salientam-se a centenária sinagoga de Lisboa, denominada Shaaré Tikva” (Portas
da Esperança) e a sinagoga do Porto chamada “Mekor Haim” (Fonte de Vida),
inaugurada em 1938, para cuja fundação foi decisiva a intervenção de Barros
Bastos.
Uma referência especial à comunidade judaica
de Belmonte que Samuel Shwarz, na sua obra “Os Cristãos Novos em Portugal no
sec. XX”, classifica como “os
ressuscitados das fogueiras da inquisição”, em virtude de terem mantido as
tradições, ritos e orações desde o Édito de expulsão de D. Manuel I, em 1492.
3- Judeus em Guimarães
Durante o longo reinado de D. Dinis, de
1279 a 1325, os documentos das chancelarias reais mencionam pela primeira vez
comunidades judaicas organizadas, principalmente nas regiões fronteiriças (vg.
Bragança, Chaves, Mogadouro, Castelo Rodrigo, Guarda, Monforte, Olivença). Em
1367, o número de localidades que abrigam comunidades judaicas organizadas
atinge as trinta localidades. Segundo Carsten L. Wilke, “a partir de meados do
sec. XIV, a demografia do judaísmo português sofre o impacto da imigração desencadeada
pelas perseguições nos outros reinos ibéricos, com as matanças de Navarra de
1320 e 1328, pela peste negra de 1348 e pela guerra civil castelhana de 1366”.
Graças a essa forte imigração, o número de comunidades judaicas em Portugal
quase quintuplicou no sec. XV, para atingir um total de 139, número importante,
mesmo se comparado com as 216 aljamas
do reino de Castela (cf. História dos judeus Portugueses - Crasten L. Wilke-
Edições 70 Lda., 2009-pag 20). As províncias de Trás-os-Montes e as Beiras
abrigavam, por si só, metade das comunidades judaicas do reino.
Em Guimarães, na Idade Média, existia a
chamada Rua da Judiaria, a comprovar
a existência de uma comunidade judaica local organizada, com sinagoga e forno
privativo. A Drª. Maria da Conceição Falcão Ferreira identifica suficientemente
o espaço ocupado pela comunidade judaica: “esse espaço “integrava toda a
extensão de terreno, que, para sul, confrontava com as traseiras das casas da
Rua da Forja (hoje Largo de João Franco), para oeste, e da Rua Escura, para
leste, para além dos próprios quintais das casas de Val-de-Donas, a oeste, e os
da rua de S . Tiago até aos Fornos, para leste” (cf. “Guimarães: Duas Villas, um só Povo”, 1250-1389, pags. 274-287).
A Rua da Judiaria medieval corresponde à
atual Rua Dr. António da Mota Prego, que liga o largo João Franco à praça de
Santiago. A comunidade Judaica usufruía de um espaço chamado Quintã dos
Sapateiros que se estendia pelo antigo largo do Serralho e R. do Espírito
Santo. A cadeia da Correição que existia no largo da Misericórdia, antes de ser
presídio, foi sinagoga de judeus. Sabendo-se que os judeus tinham cemitério
própria para os membros da sua comunidade, falta identificar o seu lugar. A. L.
Carvalho, no seu estudo AMAP - Antigamente...1949, pag. 141 (Arquivo Alfredo
Pimenta), apresenta os seguintes elementos, recolhidos nos registos notariais,
comprovativos da existência de uma comunidade judaica em Guimarães:
1359 –
“Recolhimento da renda de um marividil anual imposto em sua casa sita na rua de
Quintã dos Sapateiros na qual ora faziam oração os judeus”.
1369 – “Da
sua casa que eles tem e hão na judiaria da Vila de Guimarães que ora traz
emprazada e em que viveu Isacc, frances judeu”
1370 –
“Emprazamento perpétuo da casa na Quintã dos Sapateiros, que ora é judiaria,
feito pelo Cabido a mestre David, judeu, quitando-lhe o Cabido a renda em sua
vida pelo serviço que dele recebe e espera continuar a receber”.
1391 –
“Emprazamento em três vidas de uma casa sita na rua da Judaria, ante a porta de
Sinagoga.”
1425
–“Emprazamento em três vidas de casas de Judaria, na Quintã dos Sapateiros, em
que ora mora Isaac Marcos, judeu, orivez, feito pelo Cabido mestre Marcos, judeu e mulher Ouro”.
1460 –
“Emprazamento em três vidas de casas na Judaria de Guimarães, a fundo da adega
do Senhor Duque... feito pelo Cabido a Mosse Querido, judeu, tecelão e mulher
Jamilla”.
1500 –
“Emprazamento de umas casas sitas na rua do Santo Espírito, que foi Judaria,
junto à casa que foi snoga (Sinagoga) que arruinou, que foi a casa dos judeus”.
1503– “...quatro traves ou
barrotes... as ques atravessam a rua pera casa dos presos que soya de ser snoga
dos judeus”.”
A.L. Carvalho,
citando o Abade de Tagilde apresenta os seguintes nomes judeus, encontrados
também em diversos manuscritos (cf. Arq. Col. Guim. – Rev. de Guimarães):
“Raby Samuel (1351); Salomão Rande, alfaiate (1370);
Jacob Damarante (1413); Rafaela (1424); Abraão Çàa Dyas (1426); Salomão Querido
(1449); David Alles (1450); Isaac Lyvi (1460); Isaac Francos (1426); Jacho
Erico (1435); Junça Luiz (1425); Samuel Montesinho (1485); Salomão Rauce
(1487); Oroza (1487); Isaac Baru (1488);
Jacob Benaadeu (1425).
E citando o Dr. Luis de Pina, acrescenta mais os seguintes nomes:
Mestre Judas, Abaz e Aly, médicos do sec.
XV, servindo o Duque de Guimarães (cf. Médicos Judeus, in Rev. de Guimarães).
Em consequência da imigração dos judeus
espanhóis devido à sua expulsão em 1496 pelos reis católicos, o bairro judeu de
Guimarães acolheu o rabino Abraão Saba, de Zamora, conhecido pelas suas
pregações na sinagoga, de que o comentário bíblico Tsror há-Mor (Feixe de Mirra) pode dar uma ideia. Abraão Saba,
pregador em Guimarães, durante a última década do sec. XV, advertia a sua
audiência contra “os encantos das jovens cristãs que, pavoneando-se às portas
do gueto, se põem de emboscada na mira de almas inocentes”. Inversamente, as
queixas das Cortes de 1481 dá-nos a imagem do judeu medieval, feito galhardo
sedutor: “Vemos os judeus em cavalos e muares ricamente ajaezados, com lobas,
capuzes finos e gibões de seda; trazem espadas douradas, toucas em rebuço,
jaezes e guarnimentos de modo que é impossível serem conhecidos. Entram assim
nas igrejas e escarnecem do Santo Sacramento e misturam-se com as cristãs em
grave pecado contra a santa fé católica. Desta tão grande dissolução nascem
ainda outros erros e culpas disformes e danosas ao corpo e à alma”.
Estas descrições dão a ideia de que em
Portugal, as tensões entre as duas comunidades eram função de aproximação
inquietante dos dois grupos, mais do que do antagonismo socio-cultural. (cf.
História dos Judeus Portugueses - Carsten L. wilke - tradução de Jorge Fernando
Campos da Costa- 2009- Edições 70, Lda- pags. 40 e 41).
A. L. de Carvalho (em Antigamente…MCMXLIX),
falando de “pirraças e maus tratos aos
judeus”, dá-nos conta de conflitos entre a comunidade judaica e cristã de
Guimarães: Nas Cortes de 1439, os procuradores de Guimarães levantam o caso, de
um fidalgo truculento, de nome Rui Vaz que, entre outras ações más, usava dar
pancada nos judeus e judias, “polla qual rezom os moradores da villa lhe nom
queriam consentir quelle estivesse em ella”.
Em 1440 voltam de novo os procuradores em
Cortes a levantar queixas contra uma certa desigualdade de tratamento por parte
do Juiz dos orfãos, quando julgava as demandas de judeus contra os cristãos. E
foram a este respeito tomadas providências.
Em 1434 el-rei D. Duarte, em
Santarém, concede privilégios à comuna dos judeus de Guimarães (cf. Lº 1º de D.
Duarte, fls. 8v, pag. 153). O Livro das Tenças d`El-Rei alude também à Judiaria
de Guimarães.
Guimarães recebeu Judeus
expulsos de Castela, em 1492, que ficaram a residir no lugar de Estrepão, pertencente à freguesia de Creixomil. A cada
novo endurecimento da opressão em Espanha afluiam refugiados a Portugal. Graças
a essa forte imigração, o número de comunidades judaicas em Portugal quase
quintuplicou no sec. XV, para atingir um total de 139, número importante, mesmo
se comparado com as 216 aljamas do Reino de Castela, sendo que as províncias de
Trás-os-Montes e das Beiras abrigavam por si só metade das comunidades de
reino.
Uma intolerante política
religiosa manifestava-se através da chamada Judenga,
realizada por ocasião da procissão do “Corpus Christi”. Segundo A. L. de
Carvalho, tratava-se de “uma dança foliona, entrudesca, onde os comparsas
fazendo momices metiam à chacota os costumes judaicos”. O ato final da Judenga
realizava-se na Praça Maior, ao recolher da procissão, junto à igreja da
Oliveira. Segundo os documentos da época (Arq. Mun., Livro das Provisões). O
grupo da Judenga, formado por 15 a 20
homens e mulheres disfarçados com máscaras, subia ao alto da Igreja e
daí, fazendo alusões a judeus da terra, citava o nome de alguns em voz alta e
lendo “loas infamatórias”. No fim destas alusões, o grupo lançava da torre da
igreja “uma bezerra por huma corda abaixo e estão todos de joelhos batendo nos
peitos, fazendo muitas canções e cerimónias que, à vista da gente insolente, pareciam verdadeiras”. À noite
“voltavam os da Judenga, correndo as ruas e matraqueando às portas dos cristãos
novos”. Uma petição dirigida a D. Isabel, filha de D. Jaime IV, Duque de
Guimarães, com o objectivo de alcançar a proibição desta costumeira. Tal
petição não obteve deferimento.
Porém, em 1591, reinando D.
Filipe I, foi publicada uma Provisão a proibir a Judenga, mas a Câmara não se conformou com tal proibição deduzindo
embargos para o Corregedor que manteve a proibição. Contudo, num recurso para a
Relação do Porto, a Câmara pede a manutenção da Judenga, alegando que dela não
resultava nenhum escândalo, “antes era jogo que a todos aprazia e era
antiquíssimo, de que estava em posse esta Vila. De tempo imemorial a esta
parte, sem haver pessoa que do tal jogo se queixasse…e que todos os reis
antepassados concederam muitos privilégios aos que entrassem na Judenga e
festejassem com semelhante jogo as festas do ano, como até agora festejavam”.
Mas, o maior argumento apresentado para a manutenção da Judenga era de que tal
espectáculo prestava tributo à Santa Religião.
Nas suas alegações, a Câmara
alegava ainda que “era muito serviço de Nosso Senhor e bem da cristandade
fazer-se a Judenga e nela representar suas superstições antigas e abusos
judaicos para que, lembrados eles dos erros dos seus antepassados, pelos quaes
foram queimados e sambenitados, não venham cair em outros semelhantes, e se
envergonhassem deles e tenham por fé e creiam o que ensina a Santa Madre Igreja
de Roma”.
Em defesa da Judenga dizia-se
ainda que com ela “não se pretende, nem pretenderá nunca, mais que tirar os
abusos e superstições judaicas, que por nossos pecados havia hoje tantos na
cristandade, pelo que era de presumir que os ditos cristãos novos…queriam hoje
usar secretamente das ditas superstições judaicas em muito grave prejuízo da fé
católico”.
Face esta alegações, por sentença de 6 de Julho de 1591, a Relação do
Porto decidiu revogar a Provisão, mantendo a dança, o jogo e a diversão da
Judenga.
Porém, os cristãos novos não
sossegaram, movendo influências para pôr fim ao desaforo de tão ridícula
paródia. Mediante pedido de uma representação de mercadores judeus, uma
Provisão de D. João IV pôs fim, definitivamente, a tal espetáculo.
Narciso machado