sábado, 15 de novembro de 2014

Processo de beatificação de D. Afonso Henriques






                         Processo de canonização 
de D. Afonso
                         Henriques na historiografia portuguesa


                                                      Introdução
     
      Os historiadores, quanto tratam das lendas relacionadas com os “milagres” de D. Afonso Henriques costumam citar, sem grandes comentários, o referido livro que o padre José Pinto Pereira, nascido em Guimarães, publicou, em 1728, em Roma, e a que chamou “APPARATUS HISTORICUS…”, onde apresenta dez argumentos para comprovar a santidade de D. Afonso Henriques. O livro foi então oferecido ao Papa Bento XIII e ao nosso rei D. João V, com o objetivo de obter os seus apoios e ativar, de novo, os trabalhos para a beatificação e promoção do culto a D. Afonso Henriques. A causa, porém, como era de prever, não teve seguimento, já que a prova para a beatificação ou santidade de alguém não pode basear-se em simples lendas. Creio que esta questão ainda não foi tratada suficientemente por nenhum historiador e merecia uma mais ampla investigação junto dos arquivos do Vaticano, caso a eventual existência da documentação não pertença ao seu arquivo secreto.
      É com auxílio das fontes da história que o investigador deverá tentar reconstituir o passado que deseja conhecer. Enquanto cada um dos indivíduos da sua época só conhecia o seu caso pessoal ou aspetos parcelares da vida do seu tempo, hoje é possível ter uma ideia mais completa da vida de uma sociedade, dos seus membros ou das suas instituições. Para se compreender determinados factos e expressões é necessário, frequentemente, reportamo-nos à época em que eles surgiram.
     Mas, uma vez reunidas as fontes, o historiador e investigador não pode utilizá-las ao acaso. Tem de avaliar a sua autenticidade e o seu mérito testemunhal. É como se o passado, que se procura descobrir, fosse a verdade discutida num processo judicial. O historiador é o juiz, mas está sozinho na procura da verdade, enquanto no tribunal existem os vários operadores judiciários a auxiliar o juiz na procura dessa verdade. Mas, existem outras diferenças entre o juiz e o historiador: enquanto o juiz procede do geral para o particular, o historiador parte do singular para apreender o quadro de conjunto, elaborando um contexto com valor real. Se não tem acesso a provas e quando não encontra indícios, o historiador pode preencher as lacunas com conjeturas e formular de hipóteses. Mas, nestas circunstâncias, o historiador honesto deve informar os seus leitores dessa situação hipotética. O processo dedutivo é extremamente perigoso. Por isso, deve-se sempre prevenir de que os seus resultados são meras hipóteses, mais ou menos prováveis, mas sujeitas a confirmação ou desmentido.           
     No quadro das qualidades exigidas ao investigador está a probidade para não dar como provado apenas o que efetivamente o esteja e cautelosamente não misturar a probabilidade de certeza, firmada nas fontes, com a mera presunção deduzida hipoteticamente. Além da probidade, o investigador tem de ter espírito crítico para discernir o verdadeiro do falso, o bom do mau. Todos sabemos que a história portuguesa está escrita com numerosas inexatidões, o que muitas vezes acontece pelo facto do erro, uma vez lançado por autor com alguma audiência, passar de livro em livro, de voz em voz, tornando-se, a partir de certa altura, muito difícil de retificar.  
    Fazer história não é aceitar como verídico todo o rol de informações, nomeadamente o produto de imaginações delirantes. A Idade Média constitui, nesse aspeto, um alfobre de informações deste género. Assim, do outro lado do espelho da história está o imaginário prodigioso português. No inventário das maravilhas religiosas, o leitor encontrará essa outra face da história, recheada de acontecimentos, onde muitas vezes, não é fácil descobrir a verdade da lenda ou a ficção da realidade. Das grandes “maravilhas” nos dão conta não só os mais antigos anais régios, mas também os cronistas das ordens religiosas. Por exemplo, a Monarquia Lusitana, iniciada por Frei Bernardo de Brito (1596) e continuada por outros cronistas da Ordem de Cister, é o lugar onde se depositam os contributos maiores para o perfil virtuoso e heróico de D. Afonso Henriques. É um compêndio de exaltação nacionalista que mergulha na narrativa bíblica desde Noé, com o seu filho Tubal a iniciar o seu périplo pelas nossas costas e colocar a primeira pedra em Setúbal. Na galeria dos prodígios da fundação está D. Afonso Henriques, como miraculado, quando tendo vindo ao mundo, tolhido de pés, foi curado por interceção de Nª Senhora. O corpo incorrupto, encontrado na abertura do monumento funerário, em Santa Cruz de Coimbra, é outra parte lógica do maravilhoso associado ao lendário da Fundação.
   As lendas miraculosas explicam a razão pela qual, nos princípios do sec. XVI, os cónegos de Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça iniciaram o processo de beatificação de D. Afonso Henriques, chegando a enviar a Roma alguns religiosos que mais empenho tinham posto nas suas iniciativas. O padre José Pinto Pereira, com o seu livro APPARATUS HISTORICUS, pretendeu ser o continuador desse movimento, mas sem êxito.
   Como vamos ver, no decorrer da narrativa do livro, as qualidades guerreiras de D. Afonso Henriques, aliadas às virtudes geralmente atribuídas aos santo fizeram com que os monges de Santa Cruz, apoiados pelos de Alcobaça o tivessem crismado de bem-aventurado, designação que se atribui aos beatos e santos. A beatificação e a santidade, de acordo com as regras estipuladas por Roma, baseiam-se em milagres comprovados e não em lendas.
   Pretende-se levar ao conhecimento público  a face de D. Afonso Henriques, de herói e santo, na historiografia portuguesa.                               
                                                 

                                    I - Como se faz um santo

     Etimologicamente, a palavra hebraica santidade significava separação (de tudo o que é comum). No conjunto das línguas e religiões semitas quer dizer separado, puro, brilhante. É um conceito eminentemente religioso, central, não apenas na religião judaica e cristã, mas também no hinduísmo, budismo e islamismo. Nesta ampla perspetiva, santo é aquele que realiza o ideal de uma religião.
   No Antigo Testamento, a palavra santidade é uma das mais frequentes, indicando a pureza, a isenção de faltas ou pecados. Designa a divindade do próprio Deus, manifestado em poder e glória (Ex. 15,11; Is.6,3). Deus é o santo por excelência e tanto seres como as coisas são santas, porque pertencem e estão consagradas a Deus (Lev. 21,44-45: Ex. 26,33).
    No Novo Testamento, levantou-se o problema escatológico de se saber como é que a santidade pode ser pensada como um conceito que sendo exclusivo de Deus, se pode estender ao homem, enquanto criatura justificada pela graça. Os que reconhecem o plano de Deus e aderem à presença de Cristo no seu autêntico destino, esses são os santos.
   Na linguagem litúrgica e canónica, chamam-se santos os servos de Deus a quem a Igreja, depois da sua morte, decretou esse título, permitindo que eles sejam venerados com culto público universal.
    O cardeal José Saraiva Martins, na qualidade de Prefeito, esteve vários anos à frente da Congregação para a Causa dos Santos. Na sua obra “Como se Faz Um Santo”, descreve as fases dos atuais processos da beatificação e canonização. Mas, nem sempre foi assim.
    Ao longo da história, os processos de beatificação e canonização não tiveram o mesmo rigor. No início da cristandade, era a devoção popular e autoridade dos bispos que definiam e proclamavam a santidade dos bem-aventurados, de tal modo que, no primeiro milénio, aparecem nomes de santos cuja existência é colocada em dúvida. Nos primeiros séculos do cristianismo, este culto só era prestado aos mártires, reconhecidos como tais por decisão episcopal. No sec. IV, o reconhecimento oficial abrangeu também outros bem-aventurados, cujo exemplo era glorificado por intervenção divina, através de milagres.
     Foi o Papa Alexandre III (autor da bula “Manifestum provatum est”, de 1179, reconhecendo D. Afonso Henriques rei de Portugal) que, em 1170, reservou à Santa Sé a legitimidade para canonizar, exclusividade confirmada, mais tarde, pelo Papa Gregório IX (1227 e 1241), começando então o processo a ser minuciosamente regulado, dando lugar a numerosos decretos, imprimindo-lhes harmonização e rigor.                            
      Em 1558, o Papa Sisto V (1585-1590) criou a Congregação dos Ritos, que passou a ser responsável pela instauração dos respetivos processos e, como tal, encarregada de verificar as virtudes heróicas e os milagres dos candidatos à beatificação e canonização.
     O Papa Urbano III, em 1634, pelo decreto “Caelestis Hierusalem Cives” proibiu expressamente “que se prestasse culto àqueles cuja Santidade não estivesse oficialmente reconhecida por uma decisão solene da igreja romana, excetuando os que estivessem na posse do culto público há mais de 100 anos”. Em consequência, para os que tiveram o referido culto, entre 1170 e 1534, poder-se ia obter de Roma a chamada “beatificação equivalente”.
     Porém, ao longo dos tempos, as regras processuais foram-se aperfeiçoando ainda mais. Paulo VI, a 8 de Maio de 1969, pela Constituição “Sacra Rituum Congregatio”, dividiu a Congregação dos Ritos em duas congregações: “Causa dos Santos e Culto Divino” e “Disciplina dos Sacramentos”, ficando a primeira com completa jurisdição sobre os processos de beatificação e canonização. Paulo II, pelas constituições apostólicas “Divinae Perfectionis Magister”, de 25 de Janeiro de 1983 e suas “Normae Servandae in inquisitionis ab Episcopis Faciendis in Causis Sanctorum”, de 7 de Fevereiro de 1983, dividiu os trâmites processuais em duas partes: a instrução diocesana e a fase romana. Da legislação de 1983, resultou a figura importante do relator, assumindo as funções que anteriormente pertenciam ao promotor da fé e aos advogados das causas, ficando encarregado de preparar a Posição (do latim Positio-onis) sobre as virtudes ou sobre o martírio, através da recolha de provas testemunhais e documentais.
       Em 28 de Junho de 1988, o Papa Paulo II alterou o nome “Congregação da Causa dos Santos” para “Congregação para a Causa dos Santos”.
     Em princípio, o impulso processual para a beatificação ou canonização pode ser iniciado por qualquer pessoa ou associação de fiéis, em comunicação dirigida ao bispo da diocese, desde que decorridos, pelo menos cinco anos após a morte do candidato, salvo em casos muito especiais, como aconteceu com a Madre Teresa de Calcutá e João Paulo II, cujo prazo foi dispensado, respetivamente, por João Paulo II e Bento XVI. O candidato é representado pelo Postulador da Causa, uma espécie de advogado de defesa, para o representar diante da Congregação para Causa dos Santos e que irá iniciar o processo diocesano. São nomeados pelo bispo vários especialistas. Finda esta fase, o processo é enviado para Roma, iniciando-se, então a fase romana do processo, que será estudada por três comissões especializadas, compostas por historiadores, teólogos e prelados da Congregação para a Causa dos Santos. A função do antigo “cardeal-diabo”, uma espécie advogado de acusação, deixou de ter autonomia e passou a estar integrada nas próprias comissões. Quando é preciso provar a existência de um milagre, por intercessão do candidato confessor, é nomeada uma comissão de médicos e cientistas qualificados, cujas conclusões irão fundamentar a decisão papal que, por decreto, o declara solenemente beato ou santo.
    Quando se trata de um mártir é dispensado o milagre, bastando um “decreto de martírio”, elaborado pela Congregação para a Causa dos Santos, seguindo-se a marcação da data para a solene beatificação. Com a beatificação, declara-se a santidade da vida do beato e é permitido o culto público em sua honra, no âmbito limitado de uma diocese ou de uma instituição eclesiástica”. Por sua vez, a canonização implica uma declaração solene de santidade e prescreve o culto público em toda a Igreja. Assim, enquanto a canonização conduz ao culto universal, a beatificação queda-se pelo culto local, uma e outra pressupondo a declaração prévia da heroicidade das virtudes praticadas pelo beato ou santo, provadas pelo menos com um milagre.
     Na linguagem canónica existe uma diferença substancial entre milagre e graça. Graça, segundo a definição do cardeal Saraiva Martins, é “uma ajuda divina que se obtém para o bom êxito das atividades do homem, sendo que essa ajuda não se obtem com a perturbação das leis naturais, mas como um “suplemento” no seio da própria natureza, uma assistência particular que Deus concede, intensificando as potencialidades naturais”. Por sua vez, o milagre manifesta-se como um acontecimento que se distingue do habitual desenvolvimento da realidade” (vg. as curas). A veracidade do presumível evento miraculoso faz-se pela dupla via: teológica e científica. A fórmula utilizada pelo Papa para uma canonização começa com as palavras: “Para honra da Santíssima Trindade, para exaltação da fé católica e para o incremento da vida cristã …”. Como refere o cardeal Saraiva Martins, no referido livro, ”hoje como ontem, as beatificações e canonizações têm como finalidade a glória de Deus e o bem das almas” (op. cit. – pags. 97 e 52-54).
  
                                 II - A lenda e o mito
                                                     
                                                1- O mito                
    
       Segundo Platão “os mitos são vestimentas poéticas envolventes de grandes verdades bem dignas de serem meditadas”.
       Carl Jung fala das verdades psicológicas do mito, que ele assegura serem universais e necessárias à saúde do psique humano. Segundo ele, necessitamos de histórias dos mitos para que haja sentido na confusão reinante na sociedade e nos nossos espíritos: os mitos dão voz à verdade do nosso inconsciente. E sempre responderam às pessoas nos seus anseios em conhecer o significado de um desejo que é especialmente premente, talvez numa sociedade acentuadamente laica como parece ser cada vez a Ocidental.
     Luis de Camões afirma expressamente n`Os Lusíadas, não ser os feitos do capitão da Índia, Vasco da Gama, a finalidade do seu canto. Mas sim o louvor da Pátria, através da ilustre galeria de retratos do passado: reis, chefes militares, todos empenhados em engrandecer Portugal. Por isso, Camões elevou o nosso primeiro monarca, o Fundador da Nação, às proporções de mito “cuja morte lamentam os rios e montes da Lusitânia que ele fez reino”; e Egas Moniz, o vassalo fiel, símbolo da nobre virtude cavalheiresca da honra” (cf. Canto III). A ação dos Lusíadas é a história de Portugal.  Guimarães e a independência de Portugal, com a Batalha de S. Mamede, é necessariamente o primeiro capítulo.
     Segundo Fernando Pessoa, o mito é “o nada que é tudo” e, por isso, é susceptível de diversos níveis de significação. Trata-se de uma narrativa simbólica, sob aspetos fabulosos, que pode fazer-se de tudo:  vg. de factos histórcos, da religião e seus mistérios, do homem e suas paixões, da ciência e suas descobertas etc. De tal modo que não há nada no campo da natureza e da cultura que não tenha sido ou possa vir a ser mitificado. E ao longo da história é de tal modo variada que uma classificação global das suas formas e manifestações se tornam tarefas demasiado pesadas.
    Mas, não são apenas Camões, Pessoa e Carl Jung que registam o mito. Já muito antes, a memória historiográfica portuguesa é sustentada por uma grande incidência no quadro da Reconquista em que os mouros são apresentados como um povo invasor, opressor e inimigo de Deus. Relativamente a D. Afonso Henriques, nem sempre o “Rei histórico” corresponde ao “Rei lendário e mítico”, presentes na tradição popular, figura cujo universo conceptual foi sendo construído ao longo dos tempos. Admitindo embora os exageros de muitos relatos, existe uma realidade histórica que lhe subjaz e que foi passando na tradição oral, de geração em geração. E porque a fragilidade da história abriu as portas à imaginação e à fantasia, assim nasceram as lendas e os mitos, sobre a vida e obra de D. Afonso Henriques, de tal modo que, por vezes, o mito sobrepõe-se à história. Mas, a história e a cultura portuguesa só se podem compreender pela experiência de vida, no confronto entre o passado, o presente e o futuro, fazendo perceber, deste modo, o sentido das palavras e dos atos, visto que lhes restitui o contexto global.
                                               
                                               2 – A lenda

  A palavra lenda deriva do gerúndio latino “legenda”, ou seja, aquilo que devia ser lido na festa de um santo mártir ou confessor. A “legenda medieval” (leitura medieval) começou, em alguns casos, a modificar a história dos santos, adicionando ou retirando àquilo que realmente tinha sucedido, a maior parte das vezes produto da imaginação.
   Entende-se, atualmente, como lenda o relato transmitido por tradição oral de factos ou acontecimentos encarados como tendo um fundo de verdade, pelo que são objeto de crença pelas comunidades a que respeitam. Essa narrativa fabulosa pode dizer respeito a uma qualquer personagem, quase sempre histórica.  São um misto de verdade e fantasia, mas com um grande predomínio da fantasia. Está localizada numa área geográfica ou numa determinada época, embora os factos históricos apareçam transfigurados pela imaginação popular. As lendas, segundo alguns autores, são “uma história não atestada pela história”.
   O seu significado foi-se ampliando, ao longo dos tempos, passando então a abranger narrativas mais ou menos fabulosas que corriam na tradição oral ou poemas escritos sobre a história e crenças dos povos cristãos.
    Não raramente, a existência de uma lenda é uma consequência da fragilidade da história, ou dos documentos que a fundamentaram. Por isso, muitas vezes a lenda nasce num espaço nebuloso da história, procurando completá-la ou justificá-la, num quadro de representação do imaginário. E em certos períodos da história, existiram condições culturais, de mentalidade e ambiente social, que facilitaram a sua criação e divulgação. A Idade Média foi o período da história que, de longe, mais lendas criou, onde heróis e santos, factos e lugares se viram aureolados de uma coroa de maravilhoso.
      Embora haja historiadores inimigos figadais das lendas, a ciência histórica diz-nos que muitos deles não o são, pois não é certo que “só há lendas onde não há história, nem que não haja lendas onde há história”. O que se torna importante, para quem as estuda, é saber identificar o que nelas é realidade ou fantasia. Uma boa parte da História de Portugal é contada através de lendas: v.g. a batalha de Ourique, que procura imprimir uma face de sobrenaturalidade à independência de Portugal.

        A lenda distingue-se do mito, embora os limites de ambas as figuras, por vezes, não sejam fáceis de delimitar, pela sua complexidade, obscuridade e dificuldade, sendo que as três etimologias apontadas para a raiz do vocábulo também não dão grande auxílio.
     Em presença de fenómenos, cujas causas a sua inteligência não podia compreender, o homem simplificou tudo o que passasse além da sua compreensão, atribuindo-o a poderes e vontades estranhas, responsáveis pelo bem e sobretudo pelo mal que deles lhe advinham. Do estudo dos mitos, resulta que, da multiplicidade dos efeitos, o homem primitivo deduziu a pluralidade das causas. Daí o vasto sistema mitológico, cujas formas variaram segundo as tendências étnicas e os carateres do meio.
  Tem havido imensas tentativas para explicar os mitos em termos racionais. Muitas vezes a explicação histórica não elucida a razão pela qual os mitos se desenvolveram de determinada forma. Não muito repleto de medos, de solidão e alienação, os mitos podem dar consolo, através da história de um tempo mais heróico. Alguns mitos são explicativos, colocando questões e propondo respostas às dúvidas filosóficas. Outros são etiológicos, explicando as causas e origens de determinado fenómeno. Outros ainda legitimam determinado povo ou uma família reinante.
   Entre a lenda e o mito existe de comum a porção do natural e irracional que um e outro contêm. Diferem, porém, no grau de transcendência, do significado e recuo no tempo. 

                    III - D. Afonso Henriques, o miraculado
 
     Importa distinguir a taumaturgia do messianismo régio. O rei taumaturgo é aquele que tem a faculdade de fazer milagres. Os reis de França e Inglaterra, desde cedo, assumiram possuir poderes curativos. Porém, a doutrina histórica peninsular sempre se inclinou no sentido de que os reis hispanos nunca se arrogaram de tais poderes taumatúrgicos.
    No entanto, relativamente a D. Afonso Henriques, o autor da Crónica dos Cónegos Regrantes de Sto Agostinho atribui-lhe poderes taumatúrgicos, manifestados já após a morte.

 “… O seu corpo exalando o odor de santidade, foi objeto, aquando da abertura da sepultura, na presença de D. Manuel, de grandes manifestações de devoção que se traduziram na busca afanosa de relíquias (…) do seu corpo, ou do seu vestido, e se não o fecharam logo, todo o levaram e com esta mesma devoção trazem muitas pessoas em relicários cabelos e partículas de vestidura do mesmo santo Rei, por cujos merecimentos se veem de Deus socorridos em suas enfermidades”.

    Situação diferente é o messianismo régio, ou seja, quando um monarca é reconhecido como tendo sido escolhido pela divindade para realizar um plano positivo para os seus súbditos, concedido a partir da própria divindade, notando-se sinais supostamente tangíveis e inquestionáveis deste caráter messiânico. Foi o que aconteceu entre nós com as lendas da cura dos pés de D. Afonso Henriques e o milagre de Ourique, relativamente à fundação de Portugal.
      O Prof. José Mattoso, nos seus escritos, menciona três faces do Rei Fundador, ao longo da historiografia portuguesa, com os seguintes significados:
1         – O herói e santo, ao ser curado do aleijão de nascença (pernas encolhidas), por um milagre de Nossa Senhora e ao ser beneficiado pelo milagre de Ourique com o aparecimento de Cristo na véspera da batalha, prometendo-lhe a vitória. Esta imagem deriva exclusivamente de uma tradição historiográfica iniciada em Santa Cruz de Coimbra, com os “Annales domni Alfonsi portugallensium regis”.
2   - A “Gesta de Afonso de Henriques” que apresenta um retrato, também apologético, mas completamente diferente, tentando explicar os seus infortúnios e recordar os seus feitos. A Gesta é “produto da inspiração poética para imitar a épica castelhana, com o intuito de exaltar a figura do chefe militar e de explicar os seus reveses e de mostrar que os seus excessos eram temperados pelo grupo dos seus vassalos”.
 - A imagem dos “Livros de linhagens”, enquanto memória da aristocracia nortenha, é uma face verdadeiramente depreciativa. Mais tarde, o historiador Oliveira Martins (1845-1894) haveria de ser extremamente duro para com ele, classificando-o, além do mais, de “fraco general, seco, astuto, brutal, pérfido, friamente ambicioso…” etc, etc.
    
    Destas três imagens, José Mattoso conclui que “os cónegos de Santa Cruz de Coimbra, os cavaleiros da mesma cidade e os ricos-homens do Norte não tinham a mesma opinião acerca de D. Afonso Henriques” E conclui, apresentando a face atual do rei Fundador, em que a auréola de santo, de herói e de génio se esbateu (cf. José Mattoso - Naquele Tempo, pags. 455-482  -  Temas e Debates – Círculo de Leitores).
      Para a análise do processo de beatificação do Rei Fundador, interessa-nos apenas a historiografia portuguesa que o apresenta como herói e santo ou quase santo, imagem derivada, como se referiu, exclusivamente da tradição historiográfica, iniciada em Santa Cruz de Coimbra. Não se esqueça que se deve a esses monges os primeiros textos acerca dos feitos de D. Afonso Henriques e continuaram a ser eles, com os de Alcobaça, quase os únicos até ao princípio do sec. XVI.
   Os cónegos de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça, cujos mosteiros foram fundados por D. Afonso Henriques, fizeram sempre da sua ligação ao Fundador de Portugal um motivo de honra, assumindo a incumbência e responsabilidade por cultivar a sua memória.
     E essas memórias estavam ligadas à cura miraculosa do aleijão de nascença e à visão miraculosa de Cristo, na véspera da batalha de Ourique. Sabemos como os milagres ocuparam um lugar de destaque no âmbito da literatura da Idade Média, sendo que muitos deles chegaram até nós através de uma estreita ligação a um determinado local de culto, transformado, muitas vezes, em lugar de peregrinação. Os chamados Livros dos Milagres dão-nos conta desse fenómeno.
                                                
                                      1 - O milagre da cura do aleijão

     Os detalhes desse milagre da cura do aleijão nos dão conta os mais antigos anais régios, desde os redatores da Monarquia Lusitana aos cronistas das ordens religiosas.
   Vejamos o que nos diz Duarte Galvão (1446-1517) a tal respeito, na Crónica de D. Afonso Henriques:

   “Veio a Rainha a parir um filho grande e formoso, que não podia ser mais uma criatura, salvo que nasceu com as pernas tão encolhidas, que, pelos pareceres de mestres e de todos, julgavam que nunca poderia ser são delas.
 ( …) Logo que dom Egas Moniz soube que a Rainha parira, cavalgou à pressa, e veio a Guimarães, onde o Conde D. Henrique estava, e pediu-lhe por mercê que lhe desse o filho que lhe nascera para o poder criar, como lhe tinha prometido.
    O Conde respondeu-lhe que não quisesse tomar tal encargo porque o filho que Deus lhe dera, pelos seus pecados, tolhido, de maneira que todos acreditavam que nunca vingaria, nem viria a ser homem.
   E quando dom Egas viu a criatura tão formosa e com tal aleijão teve grande pena  dela.
  (… E estando D. Egas deitado uma noite dormindo, tendo já o menino cinco anos, apareceu-lhe Nossa Senhora e disse:
  - dom Egas, dormes? Ele acordando com esta visão e voz, respondeu: Senhora quem sois voz? Ela disse: Eu sou a virgem Maria que te mando que vás a um tal lugar, dando-lhe logo sinais dele, e faz aí cavar, e acharás lá uma igreja, que noutro tempo foi começada em meu nome, e uma imagem minha. Faz reconstruir a igreja e a imagem feita à minha honra, e isto feito, farás aí vigília, pondo o menino que crias sobre o altar: e sabe que se curará, e será são de todo. E não trabalhes menos, de aí em diante, a criá-lo bem e a guardá-lo como fazes porque o meu filho quer por ele destruir muitos inimigos da fé.
   … E quando chegou a manhã, levantou-se logo e foi com muita gente àquele lugar que lhe fora dito: e mandando aí cavar achou aquela igreja e imagem, pondo em obra todas as coisas que Nossa Senhora lhe mandar, à qual aprouve, por sua santa piedade, logo que o menino foi posto sobre o seu altar, foi logo curado e são das pernas, sem nenhum aleijão, como se nunca tivesse tido nada.
 …  E por causa deste milagre, foi depois feito nesta igreja, com muita devoção, o mosteiro de Cárquere

    Cárquere é uma povoação antiquíssima, como o atestam os inúmeros vestígios da dominação romana, por exemplo, dezenas de lápides que se encontram no Museu Etnográfico de Lisboa e no Museu Martins Sarmento, em Guimarães. Atualmente é uma freguesia do concelho de Resende, distrito de Viseu e diocese de Lamego. A igreja matriz, românica (da 2ª metade do sec. XII) e monumento nacional e o convento anexo têm origens na lenda da cura de D. Afonso Henriques quando era criança de 5 anos, por ter nascido com as pernas “pegadas”.
 Trata-se de um mosteiro dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e que pertencia ao patronato de D. Egas Moniz do qual se perdeu quase toda a documentação. Segundo José Mattoso, “como se trata de um mosteiro pouco conhecido, pode-se presumir que a lenda do aleijão tenha aí nascido e se destinasse a perpetuar a memória da família de Ribadouro com o nosso primeiro rei” (cf. D. Afonso Henriques , pag. 372) 


                                   
                                         2– Milagre de Ourique
                                  

          Muito se tem falado, discutido e escrito sobre esta lenda. Em relação ao mítico acontecimento, tudo é muito nebuloso, começando, desde logo, pela localização do evento (Oric, Ouric, Ourich, Auric,  Aulich – formas do nome Ourique que aparecem nos documentos mais antigos). A única coisa que se pode afirmar com certeza é que, a 25 de Julho de 1139, dia de Sant`Iago, decorreu um encontro bélico, de maior ou menor magnitude, e no qual D. Afonso Henriques se sagrou vencedor, liderando os seus nobres que doravante o aclamaram como rei. Relativamente a tudo o resto, as interrogações são muitas.
 Por isso, a nós interessa-nos aquele meio termo que se tem entre a realidade e o sonho, entre o natural e o sobrenatural, entre a banalidade das coisas correntes e a poesia das coisas raras. Por estas razões, voltando as costas às polémicas acesas em torno do caso, interessa-nos apenas a narrativa tal qual se desenvolveu ao longo dos tempos. Mas o estudo dos símbolos, das insígnias e dos rituais são importantes para se compreender as convicções, as ideias e as representações mentais dos homens da Idade Média.
    A narração mais antiga que dá notícia da Batalha de Ourique é bastante lacónica e, segundo José Mattoso (cf. Biografia de D. Afonso Henriques, pags. 160-161) aparece na “versão primitiva da coleção de textos a que Pierre David, o seu melhor editor, chamou “Annales Portucalenses veteres”, constituídos, tal como o nome “anais” indica, por conjuntos de notícias breves, acerca de acontecimentos atribuídos a datas bastante precisas, com três fases redatoriais: notícias até 1079, até 1111 e até 1168, sendo que a notícia acerca da Batalha de Ourique se encontra na última secção, dizendo apenas o seguinte”:

   “Na era de MCLXXVII, no mês de Julho, no dia de S. Tiago, no lugar chamado Ourique, houve uma grande Batalha entre os cristãos e os mouros, sob o comando do rei Afonso de Portugal e, da parte dos pagãos, do rei Esmar, o qual vencido, se pôs em fuga”.

   A mesma notícia, mas já mais desenvolvida, invocando a “ação heróica, retumbante e esmagadora da batalha”, aparece nos chamados “Annales D. Alfonsi Portugallensium regis  (Anais de D. Afonso, Rei dos Portugueses), escritos por um cónego regrante de S Cruz de Coimbra.

É o próprio D. Afonso Henriques que, em 29 de Outubro de 1152, narra em Coimbra o acontecimento do milagre de Ourique, perante muitos fidalgos, entre os quais Mem Peres. E foi a pedido de Mestre Alberto, conselheiro de El-Rei, que Mem Peres redigiu a seguinte carta:
  
     “ Eu Afonso, rei de Portugal… diante de vós, Bispo de Braga, Bispo de Coimbra e Teodósio e de todos mais vassalos do meu reino, juro em esta cruz de metal e neste livro dos santos evangelhos, em que ponho as minhas mãos, que eu sou miserável pecador, vi com estes olhos indignos Nosso Senhor Jesus Cristo… e disse entre mim mesmo: Mui bem sabes, Senhor Jesus Cristo, que por amor vosso tomei sobre mim esta guerra, contra os vossos adversários, em vossa mão estar dar a mim e aos meus fortaleza, para vencer os blasfemadores do vosso nome(…). A que fim me apareceis senhor? Quereis por ventura acrescentar a fé a quem tanta tem? Melhor é por certo que vos vejam os inimigos que não crêem em vós, que eu, desde a fonte do baptismo, vos conheci por Deus … O Senhor com um tom de vós suave que minhas orelhas indignas ouviram, me disse: Não te apareci deste modo para acrescentar a tua fé, mas para fortalecer o teu coração, neste conflito, e fundar os princípios do teu reino, sobre pedra firme. Confia, Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas também todas as outras em que pelejares, contra os inimigos da minha cruz …. Acharás tua gente alegre e esforçada, e te pedindo que entres na batalha com o título de Rei… Eu sou o fundador e o destruidor de reinos e impérios e quero em ti e teus descendentes fundar, para mim, um império para cujo meio a seja meu nome publicado estre as nações mais estranhas… E que isto se passasse na verdade juro eu, D. Afonso, pelos santos evamgelhos, tocados com estas mãos…” (cf. Eduardo Amarante & Rainer Daehnhardt, in “PORTUGAL- Missão Que Falta Cumprir”, pag. 50 - ed. Zéfiro)

    O uso da narrativa na primeira pessoa, ou seja, a atribuição da narrativa ao próprio rei é explicada por José Mattoso, num caso semelhante, relacionado com a tomada de Santarém, do seguinte modo: “Pode-se sugerir, no entanto, que o autor do texto tivesse conhecido um escrito do género do De Expugnatione ou da tríplice carta dos cavaleiros teutónicos, e, sugestionado pelos textos epistolares, pretendesse usar o mesmo recurso literário; por isso, adopta o discurso na primeira pessoa, mas sob a forma de notitia. A atribuição do relato ao próprio rei destinar-se-ia a conferir maior autoridade e solenidade ao seu escrito (cf. Reis de Portugal- Afonso Henriques, pag. 238-Temas & Debates
      No Livro dos Arautos (1416) consta o seguinte:

     E porque antes daquele combate, tal rei cristão vira numa aparição o Nosso Senhor Jesus Cristo, com as cinco chagas, e pelo auxílio da graça do mesmo Cristo, venceu esses cinco reis infiéis…”

      Esta versão também se encontra na Crónica de 1419, atribuída a Fernão Lopes.
   Em 1485, Vasco Fernandes de Lucena, embaixador de D. João II, junto do Papa Inocêncio III,  fala também no milagre de Ourique:

    “cercado pela multidão muçulmana, Cristo em pessoa veio em socorro do nosso primeiro monarca, incutindo-lhe a fé na vitória”.
                       
         Assim, a evolução do tema verifica-se pela narrativa que o milagre foi tendo, a partir do sex. XV, evoluindo para a versão que se encontra no texto de Duarte Galvão, passando pelas narrativas amplificadas da Crónica de Cister, de Frei Luís de Brito, e da Monarquia Lusitana,  de Frei António Brandão.
  Vejamos o que nos diz um excerto da Crónica de Duarte Galvão:

  “Quando finda a tarde, depois que o príncipe fez pôr as guardas no seu arraial, o eremita que estava na ermida que acima dissemos, veio até a ele e disse-lhe:
   Príncipe dom Afonso, Deus te manda por mim dizer que, pela grande vontade e desejo que tens de o servir, quer que tu sejas ledo e esforçado: ele te fará amanhã vencer el-Rei Ismar e todos os seus grandes poderes. E mais te manda por mim dizer que, quando ouvires uma campainha que na Ermida está, tu sairás fora e ele te aparecerá no céu, assim como padeceu pelos pecadores. E já antes disto, ele tinha feito e dotado com grande devoção o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra…
   Desde que o eremitão partiu,  o príncipe dom  Afonso pôs os joelhos em terra, e disse:
 - Oh bom senhor Deus, todo poderoso, a que todas as criaturas obedecem, sujeitas a teu poder e querer, a ti só conheço e agradeço… E tu, Senhor, sabes que por te servir passo muita fadiga e trabalho contra estes teus inimigos, com os quais, por serem contra ti, eu não quero paz nem quero tê-los como amigos.
  E desde que isto disse, com outras palavras muito devotas encomendou-se a Deus e à virgem gloriosa, Sua mãe. Então encostou-se e adormeceu.
   E quando foi uma meia hora antes da manhã, tocou a campainha como o eremita dissera e o príncipe saiu fora da sua tenda, e segundo ele mesmo disse e deu testemunho em sua história viu Nosso Senhor em cruz, na maneira que lhe dissera o eremitão. Adorou-o muito devotamente com lágrimas de grande prazer, confortado e animador…dizendo:
  - Senhor, aos hereges é que preciso apareceres, pois eu sem nenhuma dúvida creio e espero em ti firmemente.
   …Neste aparecimento foi o príncipe dom Afonso certificado por Deus de sempre Portugal haver de ser conservado em reino… Tudo é para crer que Nosso Senhor quereria e faria a Príncipe tão virtuoso, sobre quem fundara reino e Reis tão virtuosos para o seu serviço e da Santa fé católica, e por suas coisas andarem por culpas dos tempos, em mui falecida lembrança de escritura quis Deu, segundo parece, que ficassem algumas em confirmada fama”.

      No sec. XVI, encontramos em várias fontes, referências ao milagre de Ourique, como origem do brasão nacional, como é o caso da crónica de Duarte Galvão (capítulos XV a XVII)  e de Os Lusíadas, de Luís de Camões que registou a lenda, nos seguintes termos:

                                       A matutina luz, serena e fria
                                       As estrelas do Polo já apartava
                                       Quando na Cruz o Filho de Maria,
                                       Amostrando-se a Afonso, o animava.
                                       Ele, adorando Quem lhe aparecia,
                                       Na fé todo inflamado, assim gritava:
                                       Aos infiéis, Senhor, aos aflitos,
                                       E não a mim, que creio o que podeis.                                      
                                       
                                      (Canto III, 45. Veja-se também o 53 e 54)
  
      Esta narrativa miraculosa, haveria de manter-se enraizada durante cinco séculos, até Alexandre Herculano, altura em que este historiador, em 1846, publicou o I volume da sua História de Portugal, desvalorizando e desmitificando o “milagre de Ourique”. Colocou a batalha em lugar secundário para dar ênfase à Batalha de S. Mamede. Esta opção foi objeto de duras críticas  por parte de setores mais conservadores da intelectualidade da época, que o apelidaram de “inimigo da fé e da verdade”, e “detrator das glórias nacionais”. Mas já muito antes de Herculano, a realidade histórica do facto tinha sido rejeitada, vg, por Luís António Verney, na sua obra “Verdadeiro Método de Estudar”, publicada em 1746, precisamente 100 anos antes. Só que o ambiente cultural do tempo de Verney era totalmente diferente do ambiente explosivo criado pelo liberalismo da época.  
      Alexandre Herculano, chamando “fábula à lenda”, contestou a historicidade da aparição de Cristo com o fundamento de que “A Vida de S. Teotónio”, escrita no sec. XII, por um frade crúzio, contemporâneo da época de D. Afonso Henriques, ao narrar a batalha de Ourique, embora se refira aos cinco Reis Mouros, não regista nenhuma aparição. E a Crónica Geral de Espanha de 1344, do Conde D. Pedro, também não. Por isso, é que os autores modernos afirmam que a aparição de Cristo em Ourique é um “acontecimento” que surgiu por razões políticas.
    Mas, na marcha da Reconquista, a face miraculada de D. Afonso Henriques aparece também na tomada de Santarém, a 7 de Março de 1147.  Segundo nos conta o padre Inácio de Vasconcelos, na monografia, História de Santarém Edificada, publicada em 1740:

    “ao cabo de paciente arremetida, rompida a resistência adversa e derrubadas as portas da cidade, Afonso Henriques dobrou os joelhos em terra e agradeceu a ajuda divina que na véspera se lhe manifestara”. (Ver outros relatos, em História Prodigiosa de Portugal – Mitos e Maravilhas, de Joaquim Fernandes - QuidNovi).

    Mas, a face miraculada de D. Afonso Henriques verificou-se também no monumento funerário que ficaria patente em Santa Cruz de Coimbra, cujos alicerces foram patrocinados pelo Rei Fundador, em 28 de Julho de 1131. D. Manuel I, considerando o túmulo demasiado modesto, em 1515, procedeu à sua reforma. A trasladação solene das ossadas régias de D. Afonso Henriques e seu filho Sancho I, foi efetuada a 16 de Julho de 1520. O monumento funerário tornou-se parte lógica maravilhosa associada ao lendário do Fundador.
 D. João Homem, cavaleiro fidalgo da casa de D. Manuel I, conta-nos o que “aconteceu” no momento da deposição do cadáver real, no novo túmulo, narrativa transcrita por frei Timóteo dos Mártires, outra testemunha presencial, na sua Crónica de Santa Cruz:
 
   “O corpo do devoto Rei Afonso Henriques achou-se inteiro, incorrupto, a carne seca, a cor pálida e macilenta, mas de aspecto severo, que parecia estar vivo, do qual sahia cheiro suavíssimo. Tinha vestida uma garnacha comprida de pano de lam branca, e huma sobrepeliz de pano de linho. Isto tão inteiro e são como se naquela hora lhas vestissem. Era El-Rei de estatura de dês palmos em comprido (cerca de dois metros de altura) e dous e meio de largura pellos peitos (cerca de meio metro) e a perna que quebrou nas portas de Badajós era mais curta que a outra três dedos”.

    Por sua vez, Frei Nicolau de Santa Maria, carrega ainda mais nos tons dramáticos, relativamente à cena de trasladação, dizendo que

    “ D. Manuel sentou o corpo de D. Afonso Henriques num trono, com a espada na mão e as pessoas beijavam a mão do cadáver”.
  
    D. Miguel, em 1832, decidiu abrir o túmulo pela terceira vez, relato feito pela Gazeta de Lisboa, repetindo que o cadáver real tinha dez palmos de altura, confirmando o relato de Frei Timóteo dos Mártires, sendo que tal facto não garante a realidade.
  Em 2007, foi requerida nova abertura do túmulo, para um pretenso estudo genético, mas tal solicitação foi inviabilizada pelo Ministério da Cultura, sob a alegação de existir perigo em causar danos irreparáveis na estrutura tumular.
    Os textos acima mencionados refletem a mutação da memória do Rei Fundador ao longo dos tempos, evoluindo de uma imagem de Rei santo, associada ao corpo incorrupto, para uma visão mais racional ao substituir a santidade pela dimensão humana. Por sua vez, a grandeza do corpo representa a parte do mito em que através dos tempos assumiu a descrição da estatura do monarca, como símbolo de força e valentia.   
  A fantasia do tamanho do cadáver, segundo José Mattoso, significa que “um grande homem deveria corresponder um homem grande”. O seu corpo devia representar a grandeza do Fundador de Portugal que havia sido protegido por Deus.
     Os tempos das origens de Portugal, na escassez de documentos coevos e, por vezes, pouco esclarecedores, ficaram abundantemente registados através de lendas e símbolos que perpetuam esse facto histórico – ainda hoje, em alguns pontos enigmático a qualquer análise racional – que foi a criação de um reino independente. E perante essa escassez de documentos importa continuar as investigação  


                  3 - O milagre de Ourique e o historiador Alexandre Herculano

     No primeiro volume da História de Portugal, publicado em 1846, Alexandre Herculano (1810-1877) dedica apenas uma nota ( nota XVI) ao milagre de Ourique nos seguintes termos:

  “ Discutir todas as fábulas que se prendem à jornada de Ourique fora processo infinito. A da aparição de Cristo ao príncipe antes da batalha estriba-se em um documento tão mal forjado que o menos instruído aluno de diplomática o rejeitará como falso ao primeiro aspecto (o que facilmente poderá qualquer um verificar no Arquivo Nacional, onde hoje se acha. Parece, na verdade, impossível que tão grosseira falsidade servisse de assunto a dicussões graves. Quem, todavia, desejar conhecer a impostura desse documento famoso consulte a memória de Frei Joaquim de Santo Agostinho”.

    Até Herculano, a historiografia portuguesa, baseando-se na“tradição constante e multissecular”, apresenta o milagre de Ourique como facto verdadeiro, pelo que a declaração de Herculano,  acima transcrita, originou, desde logo, fortes reações por parte do clero, cuja polémica iria prolongar-se durante onze anos (1846-1857).  
  Assim, pouco tempo depois da publicação do vol. I da História de Portugal de Herculano (que chegou apenas ao vol. IV (1853), surge um opúsculo, da autoria de António Lúcio Maggessi Tavares, intitulado “Demonstração Histórica e Documentada da apparição de Christo nos campos de Ourique, contra a opinião do Snr. Alexandre Herculano”, onde defende a tradição do milagre de Ourique como verdadeira e fundamento essencial da fundação da nacionalidade. Segundo Maggessi não era crível que “uma tradição como a de Ourique, tradição nacional secularmente transmitida e aceite, não correspondesse a um facto verídico, até porque tal significava, em última análise, o subestimar da boa fé crítica, inteligência, honra e até amor próprio dos nossos maiores que a veicularam e tiveram por verdadeira”.
     Maggessi pretendia defender essa “verdade histórica” com testemunhos coevos dos acontecimentos: o testemuinho de S. Bernardo de Claraval e uma cópia coeva do auto de juramento de D. Afonso Henriques, que não passava de um traslado do juramento constante da III parte da Monarquia Lusitana de António Brandão (1).
  O denominado argumento de S. Bernardo consistia no facto de, nos seus sermões, respeitantes à paixão de Cristo, existir uma referência explícita ao milagre de Ourique, testemunho esse considerado contemporâneo do acontecimento. Porém, Herculano, no seu opúsculo Eu e o Clero, alega que essa referência explícita, falsamente atrbuida a S. Bernardo, datava do sec- XVIII.

    Em 1847, surge novo opúsculo, desta vez da autoria de José Diogo da Fonseca Pereira, intitulado “O Primeiro Tomo da História de Portugal por Alexandre Herculano, considerado em relação ao Juramento d`Affonso Henriques”. onde defende que a fundação da nacionalidade só encontra explicação  no Juramento de D. Afonso Henriques (do qual constam as promessas de Deus ao nosso primeiro monarca) e no milagre de Ourique. Para o efeito, enumera vários argumentos com a finalidade de provar a verdade do milagre e a pertinência da tradição de Ourique. A conceção de história destes dois autores estavam, deste modo, em flagrante contraste com a conceção de história de Herculano. Para eles, Ourique era o simbolo máximo de uma interpretação comum do passado, que, em certa medida A. Herculano vinha destituir de sentido. Assim, a batalha e o aparecimento de Cristo  marcam o início da nacionalidade e a instauração da monarquia. A atitude de Herculano perante Ourique representa aos olhos dos seus adversarios a negação do momento fundador da nacionalidade.
   A discussão atinge o seu auge com a publicação, em 1850, do opúsculo da autoria de Herculano, “Eu e o Clero. Carta ao Exmo Cardeal-Patriarca”, como resposta aos aos violentos ataques por parte do clero e alguma comunicação social.
  Em 1850, a polémica agravou-se com a publicação de um longo texto, da autoria do Padre Francisco Recreio, intitulado “Justa Desaffronta em Defesa do Clero, ou refutação analytica do impresso Eu e o Clero, Carta ao Exmo Cardeal Patriarcha por A. Herculano”. Em 1854, o mesmo autor publica “A Batalha de Ourique e a História de Portugal de A.Herculano”, classificando a carta “Eu e o Clero” de “abominável e indigna de circular em um paiz cathólico, sendo “irreverente pela sua forma, illusória e ridicula pelo seu intuito, ultrajadora e parcialmente injusta em sua crítica, indisputavelmente anti-patriotica e em algumas das suas expressões anti-catholica”.
     
   Herculano respondeu, em tom irónico, com o opúsculo intitulado “Cartas ao muito reverendo em Christo Padre Francisco Recreio…por um moribundo”. A intervenção de A. Herculano na polémica, a propósito do milagre de Ourique, desenvolver-se-ia através de cinco textos, em forma de opúsculos.

  Como bem refere Isabel Buescu, “os adversários que tomaram parte nesta polémica oitocentista, defendem que a dupla vertente da batalha de Ourique o o aparecimento de Cristo a Afonso Henriques é a pedra angular da monarquia portuguesa, da qual não é possível dissociar o estabelecimento da independência e da identidade nacionais. E como tal o defendem perante uma atitude “de Herculano que não só nega a intervenção divina antes da batalha, como põe em causa a sua lendária grandeza como confrontação militar. Trata-se, de facto, de uma atitude verdadeiramente “iconoclasta”, pois significa a destruição de uma determinada imagem concretizada no mito de Ourique, que se vê esvaziada de sentido através da posição de Herculano”. (cf. Isabel Buesco- in O milagre de Ourique e a História de Portugal de A. Herculano – Uma Polémica Oitocentista – Ed. do Instituto Nacional de Investigação Ciêntifica – 1987).
   Note-se, no entanto, que a verosimilhança do milagre de Ourique tinha já sido questionada, no sec. XVIII, por Luis António Verney, na sua obra intitulada “Verdadeiro Métodode Estudar”(1746) e ainda, por João de Barros e Damião de Góis. Só que o ambiente cultural do tempo de Verney era totalmente diferente do ambiente explosivo criado pelo liberalismo da época. Refira-se ainda que o Padre António Vieira recuperou o milagre de Ourique e a aparição de Cristo para apoiar a construção do seu pensamento messiânico e garante do Quinto Império.      
  Recorde-se ainda que, nos anos vinte do século passado, embora  não com tanto vigor, como aconteceu com a polémica oitocentista, a questão voltou à discussão pública, envolvendo personalidades como António Cabreira (que defendeu a probabilidade do milagre de Ourique), Alfredo Pimenta, David Lopes, Vitorino José César e Tomás Vilhena.
A conceção de história dos defensores da veracidade do milagre de Ourique estava em flagrante contraste com a conceção de história de Herculano.
 A “Advertência” que Herculano faz no início do vol. I da História de Portugal aponta para o “estatuto de ciência”, onde o objetivo fundamental é a procura da verdade, geradora da única estratégia: “o rigor, a pesquisa documental e a anulação de interesses capazes de obscurecer e distorcer a verdade histórica”. Tal visão contrasta com a visão da história tradicional cuja última finalidade é o patriotismo e a exaltação nacional, que, levados ao extreme, conduzem à “opacidade e distorção da história”.
   O conjunto de factos, elucidados a partir dos documentos medievais dos nossos arquivos, constitui uma das mais notáveis contribuições de A. Herculano. O seu trabalho e segurança é tal que ainda hoje se segue o historiador no essencial, principalmente no domínio dos factos políticos e sociais. Algumas das suas teses foram contestadas, certas afirmações foram corrigidas, mas a construção da história é magnífica e ainda hoje, mais de 150 anos decorridos, o investigador é obrigado a reconhecer, mesmo quando divirja, a grande capacidade de observação, visão e  seriedade do historiador. A suas iniciativas no campo da historiografia deram-lhe o estatuto de polemista e criador da historiografia científica em Portugal, cujos princípios são a sã crítica , sobretudo a veradidade e fidelidade na exposição dos factos, conforme o exame conscencioso das fontes, a imparcialidade e objetividade.
 Com Alexandre Herculano a história nacional deixou o plano transcendente, sobrenatural para se fixar na sua inteira dimensão humana.  


              IV - O processo de canonização de D. Afonso Henriques

     As lendas miraculosas explicam a razão pela qual, nos princípios do sec. XVI, os cónegos de Santa Cruz de Coimbra iniciaram o processo de beatificação de D. Afonso Henriques, “sem provanças de estilo” e “sem proteção real”, chegando a enviar a Roma alguns religiosos que mais empenho tinham posto nas suas iniciativas.
       Em 1556, o prior de Santa Cruz de Coimbra, juntamente com os seus cónegos, promoveu mais uma vez a beatificação de D. Afonso Henriques, mas, desta vez, fazendo “provanças do estilo”, com autorização do bispo conde D. João Soares e com o apoio do rei D. João III.
     Como se vê, já não era esta a primeira tentativa de beatificação, porquanto nas anteriores, embora promovidas sem “provanças de estilo” e sem a proteção real, se havia tentado. Mas, em nenhuma delas foi obtido deferimento na Cúria Romana.
     Registe-se o facto singular de, não obstante a inação de Roma, terem sido exaltadas as virtudes guerreiras, unidas às virtudes geralmente atribuídas a um santo, condição bastante para que os monges de Santa Cruz de Coimbra, apoiados pelos monges de Alcobaça, o tivesses qualificado de bem-aventurado, sendo-lhe composta uma comemoração com antífona e oração, “como se a igreja o houvera catalogado na lista dos santificados”, factos que Frei António Brandão assinala no final da III parte da Monarquia Lusitana.
   Os textos da antífona (canto alternado de dois coros) e da oração, escritos em latim e a seguir traduzidos, são os seguintes:

                                                       Oração
               
   Ó  Deus, dulcíssimo doador de todos os bens, junto de quem está o mais alto poder dos homens  e  dos Reinos e que levaste ao trono da Lusitânia o Beatíssimo Rei Afonso e distinguiste neste Mundo com grandes benefícios: concedei, vos pedimos, que, pelos méritos dele, este nosso Reino, os Reis, os Príncipes gozem sempre da tranquilidade e da desejada a paz e, nós, teus suplicantes, pelos frutos de todas as virtudes sigamos assim o estilo de vida do Rei Afonso, para que mereçamos fazer parte, igualmente, da glória.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, teu filho, que contigo vive e reina na unidade do Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém                                         
                                                          
                                                     Antífona

  Invencível Rei Afonso, corajoso combatente, defensor santíssimo do nosso Reino, amparado desde criança na fé, pela Bem-aventurada Virgem Maria, nossa Senhora, mãe de Deus, de cuja predição e patrocínio recebeste a cura dos ossos das pernas; e, quando chegaste à idade adulta, pelas armas da Fé, premunido com o capacete da E
sperança e inflamado pelo zelo da caridade combateste contra vinte Reis Mouros  e com o imperador Miramolim, com insígnias presenteadas, mas com um pequeno exército e viste Cristo, nosso Senhor, pregado na Cruz, pela calada da noite submeteste toda a Lusitânia ao jugo da fé e sublimaste o nome do Reino: intercede por nós junto de Deus com as tuas preces junto de Deus para que sejamos puros de espírito, o nosso Reino seja florescentíssimo e isento de toda a calamidade.
   Roga por nós, teus servos, invencível Rei Afonso.
    Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.     

      Em 1728, o padre José Pinto Pereira publicou, em Roma, um pequeno livro a que chamou “APPARATUS HISTORICUS…”, onde apresenta dez argumentos para comprovar a santidade de D. Afonso Henriques. O livro foi então oferecido ao Papa Bento XIII e ao nosso rei D. João V, com o objetivo de obter os seus apoios e de ativar, de novo, os trabalhos para a  beatificação e promoção do culto a D. Afonso Henriques. A causa, porém, como era de prever, não teve seguimento.
      Em 1752, alguns trabalhos análogos foram iniciados em Roma. Desses  trabalhos nos dá conta a Gazeta de Lisboa de 1753 nº 1, de 4 de Janeiro, nos seguintes termos: “Na vila de Guimarães se ajuntou a Academia Vimaranense, no dia 6 de Dezembro, aniversário do falecimento de D. Afonso Henriques, natural da mesma vila; e aplaudiu com eloquentes discursos e discretas poesias, a notícia de se tratar em Roma da sua beatificação”.
     A Academia Vimaranense foi fundada a 3 de Dezembro de 1724 pelo erudito fidalgo Tadeu Luis António Lopes de Carvalho Afonseca e Camões, presidindo à primeira sessão o dr. Francisco da Cunha Rebelo, cónego e vigário geral que no seu discurso de abertura instigou os académicos ao culto das letras pátrias, em honra do país em geral e do berço da monarquia em espacial. Ao longo da sua existência, realizaram-se grandiosas e solenes sessões, tratando variados e importantes assuntos, em prosa e em verso, na língua nacional e estrangeira.
    A História Genealógica da Casa Real Portuguesa, da autoria de António Caetano de Sousa (1674-1759), referindo-se a D. Afonso Henriques regista o seguinte:

   “ Praticou acções tão esclarecidas para o Céu, que por elas é ainda mais respeitado na terra, sendo comummente chamado Santo Rei D. Afonso Henriques. Teve culto em tempo antigo, que mereceu, como se afirma, porque Deus o honrou com prodígios. Na Cúria Romana se trata da sua beatificação ao presente e com a sagrada declaração da Santa Sé Apostólica, passará dos corações de seus Vassalos a culto público a sua virtude. O Doutor José Pinto Pereira, que muitos anos assistiu na Cúria como Expedicionáro Régio. Varão douto, imprimiu em Roma, no ano de 1728, um livro, com o título “Apparatus Historicus de Argumentis  Sanctitatis Regis Alphonsi Henriques”, dirigido ao Santo Padre Bento XIII, no qual em dez argumentos mostra as virtudes heróicas e Santidade deste Príncipe. Este livro depois de ser aprovado por ordem do Mestre do Sacro palácio, por dois Consultores da Congregação de Ritos, o deu o seu Autor a todos os Cardeais, e muitos lhe seguraram, que era abundante a prova para este Rei ser beatificado; porém, não sei se neste importantíssimo negócio se trata com aquela eficácia, que merecia o Fundador da Monarquia Portuguesa”.
  
Não compete ao historiador e investigador contribuir para a formação dos mitos e muito menos tentar dar-lhes uma aparência de realidade. Mas, muito se tem falado, discutido e escrito sobre as famosas lendas da cura do aleijão e do milagre de Ourique. Porém, como atrás se referiu, aqui interessa-nos apenas o meio termo que se situa entre a realidade e o sonho, entre o natural e o sobrenatural, entre a banalidade das coisas correntes e a poesia das coisas raras. Por essa razão, voltando as costas às acesas polémicas em torno dos milagres, ficam apenas registados, como factos históricos, os esforços e tentativas feitas, ao longo dos tempos, para a beatificação de D. Afonso Henriques.
 Certamente que D. Afonso Henriques se não foi santo, como o desejavam os monges de Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça e José Pinto Pereira, também não foi um “chefe de bandidos, obcecado pela paixão da guerra”, “um chefe medíocre, brutal e pérfido”, como sustenta Oliveira Martins.
    Diremos que dos factos praticados ao longo da sua vida, ressalta, seguramente, a faceta de militar, de político e de diplomata. Como militar ganhou praticamente todas as batalhas em que se envolveu, conquistando a independência de Portugal. Como político e diplomata obteve o reconhecimento dessa independência junto de monarcas e da Cúria Romana. 
    Como se disse, são conhecidos os amargos de boca que Alexandre Herculano (1810-1877) teve de suportar por desmitificar o alegado milagre de Ourique. Apesar disso, são eloquentes as suas palavras a respeito do Rei Fundador, escritas no final do II livro da sua História de Portugal : “o afeto nacional chegou a atribuir a Afonso Henriques a aureola dos santos e a pretender que Roma desse ao fero conquistador a coroa que pertence à resignação do martir. Se uma crença de paz e de humildade não consente que Roma lhe conceda essa coroa, outra religião também veneranda, a da pátria, nos ensina que, ao passarmos pelo pálido e carcomido portal da igreja de Santa Cruz, vamos saudar as cinzas daquele homem, sem o qual não existiria hoje a nação portuguesa e, porventura, nem sequer o nome de Portugal.

                   V - Sumário dos argumentos do Apparatus Historicus
                                            (tradução)

                                            Primeiro argumento

Ou ndício da santidade do religiosíssimo Rei Afonso Henriques é: ter-lhe aparecido Cristo Senhor, prometendo a vitória sobre os infiéis; e por ele, como sobre uma firmíssima pedra, foi fundado um império.

                                              Segundo argumento

     Ou fundamento da santidade do grande Rei Afonso é: ter sido pedido a Deus, após uma longa inação, quer por pias preces dos súbditos, quer por eficazes orações a S. João Cirita, a eliminação da perfídia e propagação da fé.

                                             Terceiro argumento

     Ou indício acerca da santidade é: ter a Mãe de Deus restituição ao Rei Afonso, enquanto criança, o uso expedito dos pés, que a natureza lhe havia negado, para que na idade adulta, como seu próprio soladado, esmagasse a serpente e o basilisco Africanos.

                                              Quarto argumento

     Ou indício da santidade do ínclito Afonso consiste: ter sido a visão  da Rainha dos Homens e dos Anjos a levar-lhe ajuda nas batalhas contra os Mouros; e também os Santos Anjos a lutar por ele na linha da batalha; de igual modo, S. Bernardo, a quem o Rei se ligara por promessa, a edificar o Mosteiro, ter-lhe anunciado, aparecendo-lhe, que, fixada a data da luta entre ambas as partes, para segurança do evento, numa curta madrugada, havia de tomar de assalto Santarém.

                                                Quinto argumento

     Ou indício da santidade do invicto Rei Afonso fundamenta-se: com grande zelo de fé, pela qual em toda a Lusitânia, com soldados esforçados e com gloriosos feitos, esmagou e aniquilou os inimigos da Cruz de Cristo.

                                                  Sexto argumento

       Ou fundamento da santidade do invicto Rei Afonso deduz-se: da ínclita fundação de duas Ordens militares, Avis e Ala, do modo que, a partir da sepultura, através daqueles sagrados soldados, vencesse os infiéis.

                                                   Sétimo argumento

      Ou indício da santidade do Rei Afonso, deduz-se: da pia fundação, de 150 célebres Basílicas, ricos Cenóbios e outros Templos, em terras conquistadas aos tiranos infiéis, para prestação do culto e louvor a Deus, com sacrifícios e louvores, sem edificar, para si, nenhum Palácio em todo o reino.

                                                    Oitavo argumento

       Ou indício da santidade do Rei Afonso extrai-se: do egrégia oferta, com sensos de ouros anuais pela qual se constituiu, a si e ao reino, tributário do príncipe dos Apóstolos e da Igreja Romana, assim como ao Mosteiro Santa Maria de Claraval.

                                                      Nono Argumento

       Ou indício da santidade do Rei Afonso infere-se: da suma piedade e do respeito pelos vigários de Cristo; da pia afeição para com todos os Santos Varões, para os quais o Devoto Príncipe se dirigia frequentemente, quer na paz, quer na guerra, quer fora, quer no interior dos conventos, divulgando, constantemente, de viva voz e por escrito, promovendo o culto a Deus e divulgando a Fé, para remissão da sua alma.

                                                       Décimo argumento

Ou fundamento da santidade do Rei Afonso Henriques resulta e desenvolve-se: das virtudes heróicas na sua vida de trabalho e favores celeste conferidos por Deus a si próprio e de prodígios depois da morte; como também do admirável Corpo incorrupto, com suavíssimo odor; e ainda da fama póstuma que se ouve por todos os séculos: Príncipe Católico, de ínclitas recordações e honra da memória; diligente propagador da fé Ortodoxa; filho devoto da Sacrossanta Igreja Romana; intrépido aniquilador dos inimigos da Cruz de Cristo; Varão admirador de todas as virtudes do género humano; embelezador das coisas públicas; modelo de futuros Reis; Pio, Beato e Santo.

                  
                      V - Algumas notas biográficas sobre os principais 
                           intervenientes no processo de canonização


                                                              1- D. Afonso Henriques 

      De acordo com a mais recente historigrafia portuguesa, o fundador de Portugal nasceu no palácio real (palatium regale), da então Vila Vimarannes.
  Para comprovar o seu nascimento em Guimarães, na falta de certidão, temos de nos socorrer de prova indireta. Enquanto a prova direta demonstra, de forma imediata, que um determinado facto ocorreu, a prova indireta assenta em dados circunstanciais que, quando conjugados, podem levar à convicção da ocorrência do facto que se investiga.
  E vejamos então quais são esses factos, relativamente ao local de nascimento:
       1 - A residência do Condes Portucalenses, desde Mumadona, sempre foi em
             Guimarães, só mudando para Coimbra em 1131, com D. Afonso Henriques.
       2 – Uma tradição oral e secular, especialmente a partir do secs. XV/XVI, recebida
              por Duarte Galvão, localiza o nascimento de D. Afonso Henriques em
             Guimarães. Com efeito, na Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, Duarte
             Galvão (1445-1517) afirma:
        
          quando Egas Moniz soube que a Rainha parira cavalgou à pressa, e
            veio a Guimarães onde o Conde estava e pediu-lhe por mercê que lhe desse o
            filho que nascera, para o haver de criar, como lhe havia prometido”.
            
         A transmissão oral da tradição surge, pois, como uma possibilidade cuja
            verosimilhança se afigura poder ser aceite sem qualquer dúvida. Negar o
           nascimento do infant, em  Guimarães, é negar a possibidade da transmição
            oral das tradições e da sua veracidade, antes da consagração pela palavra
             escrita.
   3 -  Documento importante a favor de Guimarães é também a doação, outorgada  
          por D. Teresa, em 1111, aos franceses moradores em Guimarães, de um
          campo situado junto do “nosso paço real” (palatium nostrum regale) e de
          quem D.Teresa diz: “escolhestes habitar connosco” (elegistis nosbiscum   
          commorari”). A conjugação das duas referências apontam para a residência
           oficial de D. Teresa em Guimarães.  
   4 -  Os principais acontecimentos de 1126-1128, nomeadamente a revolta contra o  
         governo de D. Teresa, o cerco ao Castelo de Guimarães por Afonso VII de Leão
          e a batalha de S. Mamede ocorreram todos em Guimarães.
    5 - A ameaça moura nas zonas de Lamego, Viseu, Seia e Coimbra aconselhava a  
          manutenção da residência Condal em Guimarães, que só mudou para   
          Coimbra, como se disse, em 1131, com D. Afonso Henriques.              
    6 - Ao longo dos tempos, sempre se ensinou nas escolas portuguesas que D.      
           Afonso Henriques nasceu em Guimarães, facto que se integra na tradição oral
            e escrita a que se refere o nº 2 supra.

         E quanto à data do nascimento?

      1 -  Ao longo dos tempos, por vezes, sem quaisquer justificações, a historiografia portuguesa foi apresentando várias datas para o nascimento de D. Afonso Henriques: 1100-1105, 1106, 1109, 1110 e 1111.
   Acontece que, na sequência de uma polémica, gerada acerca do local de nascimento de Afonso Henriques, o historiador Armando de Almeida Fernandes, que sempre foi a favor de Guimarães, começou a defender Viseu como local de nascimento, no seu livro intitulado Viseu, Agosto de 1109, Nasce D. Afonso Henriques”.
    A 29 de julho de 1109, é outorgada a doação do mosteiro de Lorvão à Sé de Coimbra, à qual, segundo Almeida Fernandes, D. Teresa não assistiu por estar retida em Viseu, em consequência da gravidez de D. Afonso Henriques, que iria nascer, nessa cidade, poucos dias depois, ou seja, a 5 de Agosto de 1109.  Porém, Almeida Fernandes “esqueceu-se” de dois factos importantes. Em primeiro lugar, é o próprio documento da doação, onde se apoia, que o desmente, porquanto nessa data (29 de Julho de 1109) já o infante Afonso Henriques tinha nascido, como vamos ver.  Em segundo lugar, o documento encontra-se assinado” (outorgado) por D. Teresa, que nesse documento jura a doação “super altare”, juramento que exigia a presença física dela, como é evidente e o direito medieval o confirma. E é também a Crónica dos Godos, em que igualmente se apoia, que nos conduz a uma data diferente.
     
   2 - Atualmente, os autores estão divididos entre 1106, 1109  (uma pequena minoria  111), sendo que o ano 1109 era aquele que reunia maior consenso entre os historiadores.  Porém, o ano de 1109 começou a ser substituído pelo ano de 1106, em consequência de um estudo realizado pelo investigador Abel Estefânio, estudo esse publicado no número 8º da Revista Medievalista e que se fundamente na Vida de S. Teotónio.
 Vejamos, sumariamente, as duas datas, obtidas a partir de cada um dos documentos: Crónica dos Godos e Vida de São Teotónio.

     A) – Se tomarmos como fonte essencial a Crónica dos Godos:

     Temos de conjugar dois documentos: a Crónica dos Godos e a doação do mosteiro de Lorvão à Sé de Coimbra.
                    
        Da Crónica dos Godos quando refere:   
           “ …tendo morrido seu pai, o conde D. Henrique, era ele (infante Afonso
               Henriques) ainda  criança  de  dois  ou  três anos...”

   Considerando que a morte de D. Henrique ocorreu em fins de Abril/princípios de Maio de 1112 (a partir de 1112, D. Henriques deixa de constar da outorga dos documentos) então a Crónica dos Godos permite-nos dizer que é mais próximo dos dos dois ou dos três anos, se houver um facto que nos obrigue a tal. E esse facto existe efetivamente. Trata-se da referência que D. Teresa faz, na doação do mosteiro de Lorvão, aos seus“filhos e filhas”:
                         
                        “Damos o referido cenóbio (mosteiro) com as suas vizinhanças...
                           para redenção das nossas almas e das almas dos nossos reis, senhores
                           Fernando e Afonso ( respetivamente avô e pai de D. Teresa) e dos
                           nossos filhos e filhas”.

   Daqui resulta que, em 29 de julho de 1109, data da doação do mosteiro de Lorvão à Sé de Coimbra e na qual D. Teresa pede pela “redenção das nossas almas... e pelas almas dos nossos filhos e filhas”, D. Afonso Henriques já tinha nascido, contrariando frontalmente a tese de Almeida Fernandes que coloca o nascimento do Rei Fundador em 5 de agosto de 1109. As filhas de D. Teresa eram as infantas Urraca, Sancha  e Teresa e os filhos eram o infante Afonso Henriques e outro irmão que teria nascido antes dele e morrido precocemente. Só se compreende a referência aos “filhos” se de facto eles já tivessem nascido. Por outro lado, a circunstância de o texto referenciar expressamente o plural para diferenciar os varões das mulheres, revela que, nessa altura, os Condes tinham mesmo esses dois filhos, o primeiro dos quais, como se disse, já falecido.
    Ora, tomando como fonte a Crónica dos Godos (como faz Almeida Fernandes)
e considerando que quando D. Henrique faleceu, em fins de abril/princípio de maio de 1112, então o infante Afonso Henriques teria pouco mais de três anos, o que aponta para os três primeiros meses de 1109. Portanto, muito antes da data preconizada por Almeida Fernandes (5 de agosto de 1109), data essa “escolhida” para defender o nascimento de Afonso Henriques em Viseu.

                  B – Se tomarmos como fonte a “Vita Sancti Theotonii”.

    Como se disse, o número 8º da Revista Medievalista, referente a julho-dezembro de 2010, foi publicado um estudo inédito, da autoria de Abel Estefânio, onde o investigador, baseado num manuscrito do sec. XII, que se encontra na Bilioteca Pública Municipal do Porto, sobre a Vida de S. Teotónio, defende ter D. Afonso Henriques nascido em 1106. A tradução do latim da parte final do manuscrito, efetuada pelo Prof. Aires Nascimento e citada por Abel Estefânio e com a qual se concorda, é do seguinte teor:

                          “Adormeceu na consciência de ter vivido bem e dos prémios dos
                           méritos,   no dia décimo segundo antes das calendas de Março, a
                           um sábado, primeira hora do dia, aquela em que Cristo ressuscitou.
                           Foi sepultado no dia décimo primeiro das mesmas calendas, no ano 56
                           do referido rei Dom Afonso I de Portugal, em cujo tempo recebeu a
                            veste de Cristo, e no ano 35 do seu reinado. Viveu em votos de vida
                            regular trinta  e um anos. Cumpriu o tempo inteiro da sua vida, como
                           ele referia, entre setenta e oitenta anos, segundo o padrão das
                            escrituras”.

       Este texto da Vita Theotónii contêm elementos que, relacionados com a data da morte de S. Teotónio, nos dá a data do nascimento do infante Afonso Henriques. O excerto da parte final da Vita Theotónii diz-nos o dia e mês em que ocorreu a  morte de S. Teotónio, ou seja, 18 de fevereiro (dia XIIº das kalendas de março), mas não nos diz o ano. Existe, porém, consenso generalizado entre os autores, no sentido de que tal facto ocorreu no dia 18 de fevereiro de 1162, porquanto o último documento do prior S. Theotónio é dessa ano.
.  Em sintonia com a tradição do ano de 1106 está também a informação existente na pia batismal da capela de S. Miguel do Castelo, em Guimarães, onde a tradição diz que, em 1106, foi batizado D. Afonso Henriques, como resulta de uma inscrição mandada fazer, em 1664, pelo prior da Colegiada de Nª Senhora da Oliveira, D. Diogo Lobo da Silveira:
  
   NESTA PIA FOI BATIZADO EL-REY DOM AFONSO HENRIQUES PELO ARCEBISPO DE BRAGA S. GERALDO, ANO DO SENHOR DE 1106.
 
 Assim, baseados no texto da Vita Sancti Theotónii e considerando  que a sua morte  ocorreu em 1162 e que, nessa altura, o nosso primeiro monarca tinha 56 anos de idade, então ter-se-á de concluir que o nosso primeiro rei teria nascido em 1106 (1162-56=1106). E conforme refere o mesmo texto, na altura da morte de S. Teotónio, D. Afonso Henriques contaria 35 anos do governo, iniciados em 1128, com a vitória na Batalha de S. Mamede. 
 
    
    E qual a credibilidade do texto do manuscrito da Vita Theotonii?
  
     A Vita Beatíssimi Domni Theotonii, primeiro prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e conselheiro espiritual de D. Afonso Henriques, é a fonte mais antiga a fazer referência à data de nascimento do nosso primeiro monarca.  Abel Estefânio defende tratar-se de um autógrafo escrito cerca de 1162”, no período entre morte de S. Teotónio e a sua canonização (1163).
     Esta proximidade da produção do texto (autógrafo) da Vita Theotonii (1162) relativamente à data de nascimento de D. Afonso Henriques (1106) e a sua contemporaneidade com o período da sua vida (1106-1185), torna esta fonte mais credível que as outras, produzidas em tempos mais afastados, nomeadamente a Crónica dos Godos, escrita muito provavelmente pouco depois da morte de D. Afonso Henriques. A Crónica dos Godos tem contra si o facto de apresentar três referências contraditórias acerca da data do nascimento do nosso primeiro monarca, retirando-lhe credibilidade:

    Era de 1151 (1113) – Nasceu o infante D. Afonso, filho do Conde D. Henrique e da
                                      rainha D. Teresa e neto do rei D. Afonso.
    Era de 1163 (1125) – O infante D. Afonso (…), tendo cerca de 14 anos de idade, na
                                           praça de Zamora tomou por suas próprias mãos (…) as armas
                                         militares  e, ali mesmo, no altar, as  vestiu e cingiu (…).
     Era de 1166 (1128) – (…) Porquanto, morto seu pai, o conde D. Henrique, como ele
                                        (infante Afonso  Henriques) ainda fosse criança de dois ou três
                                         anos (…).
       
    Ora, Almeida Fernandes, ao socorrer-se da Crónica dos Godos para determinar a data de nascimento de D. Afonso Henriques, “escolheu” uma fonte pouco objetiva, não só pela contradição de datas, acima assinaladas, mas também por conter uma referência incerta: “ Porquanto, morto seu pai, era ainda criança de dois ou três anos”. De todo o modo, tendo como fonte a referida Crónica, nunca a conclusão é aquela que Almeida Fernandes retira dela, ao fazer convergir para data certa (dia, mês e ano), forçando a interpretação dos documentos em que se baseia, com o objetivo de “provar” que D. Afonso Henriques nasceu em Viseu, a 5 de Agosto de 1109. Enquanto a historiografia moderna tenta encontrar o ano do nascimento do Rei Fundador, Almeida Fernandes, nas suas certezas, consegue dizer-nos o dia, mês e ano do nascimento de D. Afonso Henriques.  A forma enviesada como lá chegou revela total falta de credibilidade da sua “tese”.                                                                        
                                                                                     *
                                                                                 *      *
     Analisada a questão do local e data de nascimento do Rei Fundador, vejamos mais alguns dados da sua biografia.
  Teve como educador, até aos 12 anos, Egas Moniz pelo que terá sido criado dentro dos valores, exemplos de piedade e justiça, normalmente atribuídos ao seu Aio.
    Fundou e enriqueceu, com amplas doações, os vastos mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, S. João de Tarouca, Santa Maria de Alcobaça e S. Vicente de Fora. A Colegiada de Guimarães, sua capela real, foi amplamente ilustrada. Restaurou as catedrais de Lisboa, Viseu, Lamego e Évora. Fundou as Ordens Militares de S. Bento de Avis e da Ala. Deu consideráveis rendas aos cavaleiros de S. João de Jerusalém e aos dos templários.
 Como vimos, vários “escritores”, ao longo dos tempos, bem como os monges de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça, exaltando “as suas virtudes e piedade”, quiseram elevá-lo à categoria de santo, tentando por mais de uma vez a sua canonização. Mas, para além de santo, a historiografia afonsina mostra outras faces de D. Afonso Henriques: de heroi, santo, vidente, chefe guerreiro e rei fundador.(1)

(1) - Sobre a questão da data e local do nascimento, consultar, mais desenvolvidamente, do Autor, “D. Afonso Henriques – Data e Local do Nascimento do Rei Fundador.


                           2 -  OS Monges de Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça                       
                               
      Como vimos, as primeira iniciativas com vista à beatificação de D. Afonso Henriques, fundador de ambos os mosteiros, partiram dos respetivos monges.
    S. Bernardo (1090-1153), depois da morte de sua mãe, fez-se monge em Cister (Citeaux, em francês), mosteiro fundado em 1098 por S. Roberto, monge beneditino de Molesmes. Em 1115, S. Bernardo iniciou a fundação do mosteiro de Claraval, nome aportuguesado de Clairvaux ( Aube, França), de quem foi o primeiro abade e a quem se deve o engrandecimento e prestígio universal dessa Ordem. O arcebispo de Braga, D. João Peculiar, encontrá-lo-ia no 2º Concílio de Latrão, em 1139, de quem se tornou grande amigo. S. Bernardo também era amigo pessoal de D. Afonso Henriques e interveio diretamente junto do Papa Alexandre III para que Portugal fosse reconhecido como Reino independente, o que veio a acontecer, já depois da sua morte, em 1179, através da Bula Manifestis Pobabatum est.
     À morte de S. Bernardo, Claraval tinha fundado 70 mosteiros. Claraval passaria a ser o mosteiro mais importante da Ordem de Cister. Há quem afirme que S. Bernardo, mentor da Ordem do Templo, no ocidente e da Ordem Teutónica, a oriente teria sido o precursor do projeto espiritual de uma Europa Unida.
No sec. XII, estabeleceram-se em Portugal várias ordens religiosas, sendo a primeira a dos “Bernardos”, nome pelo qual são conhecidos os religiosos da ordem de S. Bernardo ou de Cister. D. Afonso Henriques prometeu a S. Bernardo de Claraval que, se conquistasse Santarém aos mouros, mandaria construir um mosteiro para a Ordem de Cister em Portugal. Diz a crónica que S. Bernardo, por inspiração divina, quis fundar um convento da sua ordem em Portugal, tendo enviado, para o efeito, homens de reconhecidas virtudes, ao anacoreta João Cerita que vivia nas imediações de Lafões. Quando chegaram, João Cerita tê-los-ia conduzido a Guimarães, onde D. Afonso Henriques tinha a sua corte e ali vivia. O monarca, recebeu com satisfação a missão dos religiosos franceses, concedendo-lhes licença para a fundação do solicitado convento. Os monges iniciaram então a procura de um lugar solitário, acabando por chegar às margens do rio Barosa e junto duma serra construíram quatro celas e uma ermida que dedicaram a S. Salvador. D. Afonso Henriques, numa visita que fez ao local, ficou admirado com a pobreza em que viviam os religiosos e pediu-lhes orações e ajuda, pois, iria reconquistar a vila de Trancoso aos mouros. Vencidos os mouros, D. Afonso Henriques teria mandado construir, junto das celas, uma igreja e pelas mãos do arquiteto, João Frilano, teria surgido o plano do mosteiro cisterciense de S. João de Tarouca, o primeiro que a ordem dos Bernardos teve em Portugal.                                                   
      D. Afonso Henriques fundou também, juntamente com D. Telo e D. João Peculiar, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (1132 ) e nele quis ser sepultado. Enriqueceu-o de bens e privilégios, de tal modo que a situação material do mosteiro atingira a importância e a opulência que haviam de influir na cidade e na história geral do país, pela irradiação que as suas iniciativas alcançaram, permitido lançar-se no caminho da instrução e da cultura. Tal circunstancionalismo haveria de influenciar e determinar a criação da Universidade de Coimbra, em 1537. Segundo o Prof. José Mattoso, Santa Cruz de Coimbra, devido a um conjunto de circunstâncias, é a “instituição religiosa medieval portuguesa acerca da qual possuímos, de longe, mais informações graças ao facto de os seus cónegos terem redigido, ainda durante o sec. XII, ou seja, bastante perto dos acontecimentos que relatam, não só três textos narrativos ainda impregnados de fervor do impulso inicial, como também vários textos normativos muito pormenorizados” (cf. D. Afonso Henriques, pag. 117). Esses textos são: A vida de Telo (fundador) e a Vida de Teotónio (primeiro prior) e a Vida de Martinho de Soure (o clérigo exemplar).

    A fundação do mosteiro de Alcobaça surgiu graças à vitalidade do espírito claravalense e da devoção do nosso primeiro monarca a Nª Sª de Claraval.    

    O pedido de fundação do mosteiro de Alcobaça foi formulado por D. Afonso Henriques, cerca do ano de 1151, tendo a carta de fundação sido expedida, por D. Afonso Henriques e D. Mafalda, a 8 de Abril de 1153, doando a S. Bernardo e aos seus sucessores na Abadia de Claraval uma herdade regalenga, situada entre Leiria e de Óbidos, local onde já existiam,  entre outras, a povoação de Alcobaça. Em 1157, o mosteiro já estava em funções, com monges vindos de Claraval.

     As preocupações culturais podem verificar-se através do fundo riquíssimo dos códices alcobacenses, como a biblioteca e o cartório. Tinham escolas públicas de latim, lógica e teologia. Nos fins do sec. XVI, os monges cistercienses de Alcobaça possuíam já uma tipografia própria, donde saíram obras importantes, como a 1ª parte da Monarchia Lusitana, em 1597. Nos primeiros séculos, o mosteiro era governado por abades vitalícios eleitos pelos monges e confirmados pelos de Cister e Claraval. O arquiteto da abadia, segundo Fr. Bernardo de Brito, terá sido um monge claravalense, denominado Frei Desidério.                 

     Nos séculos XVII e XVIII, à sombra da Real Abadia de Alcobaça, surgiu o que alguns chamam “Historiografia Alcobacense”, erguendo como obra de conjunto, a Monarquia Lusitana.

      Dessa “escola”, mas não vivendo na mesma época, fizeram parte os seguintes autores: Frei Bernardo de Brito (escrevendo as partes I e II, desde o dilúvio ao reino de Leão), Frei António Brandão (partes III e IV: desde D. Henrique a D. Afonso III), o seu sobrinho, Frei Francisco Brandão (partes V e VI: reinado de Dinis), o beneditino Rafael de Jesus (parte VII: D. Afonso IV) e Frei Manuel dos Santos (parte VIII: reinado de D. Fernando).

   Cada um trouxe para a obra a marca da sua formação, constituindo a primeira tentativa de uma “História Integral da Nacionalidade”.


                              2 -  Padre José Pinto Pereira
      
 Nasceu, em Guimarães, no dia 31 de Março de 1659, sendo filho de Jerónimo Vaz de Sá e de
Jerónima da Cunha. Era profundo conhecedor do latim e italiano. Das suas obras salientam-se o “Apparatus Históricus” e “Benedictus XIII, Summus Ecclésiae Pontifex Gratia Benedictus”. Além de fidalgo da casa real, foi expedicionário em Roma durante cerca de 30 anos, sendo durante esse período que elaborou a sua tese sobre a beatificação de D. Afonso Henriques. D. João V solicitou o seu regresso a Portugal, nomeando-o Conselheiro para o Ultramar. Faleceu poucos dias depois, a 17 de Fevereiro de 1733. Reconhecendo os seus altos serviços, D. João V mandou fazer-lhe pomposas exéquias (cf. padre António Caldas-op.cit., pag. 177).
A paixão do rei pelo esplendor levara-o a dotar o culto católico com verdadeira imponência. Uma orquestra de 72 músicos, italianos e portugueses, foi criada para o serviço do culto. Porém, a sua devoção não se reduz à magnificência das cerimónias litúrgicas, mas perpetuava-se também através dos numerosos templos e conventos que espalha por todo o país


                                              Conclusões
       
          1º  –  Os cónegos de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça, cujos mosteiros foram fundados por D. Afonso Henriques, sempre assumiram a incumbência e a responsabilidade de cultivar a sua memória, de tal modo que, logo no início do sec. XVI, promoveram a sua beatificação.
         2º  - Em meados desse século (1556), os cónegos de Santa Cruz de Coimbra, promoveram mais uma vez a beatificação, mas, em nenhuma delas foi obtido deferimento pela Cúria Romana.
           3º – Em 1728, o vimaranense, padre José Pinto Pereira, faz nova tentativa, com a publicação do APPARATUS HISTORICUS - De Argumentis Sanctitatis Regis Alfonsi Henrici  (Preparação Histórica acerca dos argumentos da santidade do Rei Afonso Henriques), apresentando no início da obra um sumário dos 10 argumentos (Syllabus Argumentorum), que depois desenvolve, com mais pormenor, ao longo do livro, tudo com o objetivo de  comprovar a santidade de monarca. 
        4º – Esses pedidos de beatificação foram fundamentados em “factos” que na altura eram considerados verdadeiros pelos seus proponentes, mas que a historiografia moderna, sobretudo a partir de Alexandre Herculano, passaram a considerá-los meras lendas.
        5º - Essa convicção da verdade dos factos resulta de, não obstante a inação de Roma, os monges de Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça, continuarem a exaltar as virtudes guerreiras, unidas às virtudes geralmente atribuídas a um santo, condição bastante para o qualificarem de bem-aventurado, chegando mesmo a ser-lhe composta uma comemoração, com antífona e oração, como se o nome de D. Afonso Henriques já constasse da lista dos santificados.
     6º - Em princípio, o impulso processual para a beatificação ou canonização pode ser iniciado por qualquer pessoa ou associação de fiéis, em comunicação dirigida ao bispo da diocese, desde que decorridos, pelo menos, cinco anos após a morte do candidato, salvo em casos muito especiais.
       7º - Depois de recebido em Roma o processo, que correu termos perante o bispo local, o relator e seus colaboradores elaboram a chamada Posição (Positio), constituída por todos elementos recolhidos pela investigação.
     8º- De acordo com as regras canónicas, para se chegar à beatificação é preciso o reconhecimento de um milagre, atribuído à intercessão do candidato (venerável), sendo que, depois disso, é necessário ainda outro milagre para aceder à canonização.
   9º – O INDEX ac status causaram (índice e situação das causas) é uma obra disponível
que contem todas as causas de beatificação e canonização, abrangendo o trabalho que a Congregação desenvolveu desde 1588, data da sua formação, com o Papa Sisto V, até ao fim de 1999.
   10º - Existem inúmeras causas paradas há muito tempo, sendo que algumas das quais mereciam a devida atenção, especialmente as causas dos candidatos leigos.
      11º - Como bem refere o cardeal Saraiva Martins, na obra citada, a ”santidade não é um luxo de alguns ou o monopólio de certos privilegiados, mas é vocação aberta a todos”.
                                                Narciso Machado







1 comentário:

  1. Bom dia caro Narciso Machado,

    Excelente exposição. Muito boa mesmo.

    Cumpts,

    João Ribeiro

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