Processo de canonização de D. Afonso
Henriques na historiografia portuguesa
Introdução
Os historiadores, quanto
tratam das lendas relacionadas com os “milagres” de D. Afonso Henriques
costumam citar, sem grandes comentários, o referido livro que o padre José
Pinto Pereira, nascido em Guimarães, publicou, em 1728, em Roma, e a que chamou
“APPARATUS HISTORICUS…”, onde apresenta dez argumentos para comprovar a
santidade de D. Afonso Henriques. O livro foi então oferecido ao Papa Bento
XIII e ao nosso rei D. João V, com o objetivo de obter os seus apoios e ativar,
de novo, os trabalhos para a beatificação e promoção do culto a D. Afonso
Henriques. A causa, porém, como era de prever, não teve seguimento, já que a
prova para a beatificação ou santidade de alguém não pode basear-se em simples
lendas. Creio que esta questão ainda não foi tratada suficientemente por nenhum
historiador e merecia uma mais ampla investigação junto dos arquivos do
Vaticano, caso a eventual existência da documentação não pertença ao seu
arquivo secreto.
É
com auxílio das fontes da história que o investigador deverá tentar
reconstituir o passado que deseja conhecer. Enquanto cada um dos indivíduos da
sua época só conhecia o seu caso pessoal ou aspetos parcelares da vida do seu
tempo, hoje é possível ter uma ideia mais completa da vida de uma sociedade,
dos seus membros ou das suas instituições. Para se compreender determinados
factos e expressões é necessário, frequentemente, reportamo-nos à época em que
eles surgiram.
Mas, uma vez reunidas as
fontes, o historiador e investigador não pode utilizá-las ao acaso. Tem de
avaliar a sua autenticidade e o seu mérito testemunhal. É como se o passado,
que se procura descobrir, fosse a verdade discutida num processo judicial. O
historiador é o juiz, mas está sozinho na procura da verdade, enquanto no
tribunal existem os vários operadores judiciários a auxiliar o juiz na procura
dessa verdade. Mas, existem outras diferenças entre o juiz e o historiador:
enquanto o juiz procede do geral para o particular, o historiador parte do
singular para apreender o quadro de conjunto, elaborando um contexto com valor
real. Se não tem acesso a provas e quando não encontra indícios, o historiador
pode preencher as lacunas com conjeturas e formular de hipóteses. Mas, nestas
circunstâncias, o historiador honesto deve informar os seus leitores dessa
situação hipotética. O processo dedutivo é extremamente perigoso. Por isso,
deve-se sempre prevenir de que os seus resultados são meras hipóteses, mais ou
menos prováveis, mas sujeitas a confirmação ou desmentido.
No quadro das qualidades
exigidas ao investigador está a probidade
para não dar como provado apenas o que efetivamente o esteja e cautelosamente
não misturar a probabilidade de certeza, firmada nas fontes, com a mera
presunção deduzida hipoteticamente. Além da probidade,
o investigador tem de ter espírito
crítico para discernir o verdadeiro do falso, o bom do mau. Todos
sabemos que a história portuguesa está escrita com numerosas inexatidões, o que
muitas vezes acontece pelo facto do erro, uma vez lançado por autor com alguma
audiência, passar de livro em livro, de voz em voz, tornando-se, a partir de
certa altura, muito difícil de retificar.
Fazer história não é aceitar
como verídico todo o rol de informações, nomeadamente o produto de imaginações
delirantes. A Idade Média constitui, nesse aspeto, um alfobre de informações
deste género. Assim, do outro lado do espelho da história está o imaginário
prodigioso português. No inventário das maravilhas religiosas, o leitor
encontrará essa outra face da história, recheada de acontecimentos, onde muitas
vezes, não é fácil descobrir a verdade da lenda ou a ficção da realidade. Das
grandes “maravilhas” nos dão conta não só os mais antigos anais régios, mas
também os cronistas das ordens religiosas. Por exemplo, a Monarquia Lusitana,
iniciada por Frei Bernardo de Brito (1596) e continuada por outros cronistas da
Ordem de Cister, é o lugar onde se depositam os contributos maiores para o
perfil virtuoso e heróico de D. Afonso Henriques. É um compêndio de exaltação
nacionalista que mergulha na narrativa bíblica desde Noé, com o seu filho Tubal
a iniciar o seu périplo pelas nossas costas e colocar a primeira pedra em
Setúbal. Na galeria dos prodígios da fundação está D. Afonso Henriques, como
miraculado, quando tendo vindo ao mundo, tolhido de pés, foi curado por
interceção de Nª Senhora. O corpo incorrupto, encontrado na abertura do
monumento funerário, em Santa Cruz de Coimbra, é outra parte lógica do
maravilhoso associado ao lendário da Fundação.
As lendas miraculosas explicam
a razão pela qual, nos princípios do sec. XVI, os cónegos de Santa Cruz de
Coimbra e Alcobaça iniciaram o processo de beatificação de D. Afonso Henriques,
chegando a enviar a Roma alguns religiosos que mais empenho tinham posto nas
suas iniciativas. O padre José Pinto Pereira, com o seu livro APPARATUS
HISTORICUS, pretendeu ser o continuador desse movimento, mas sem êxito.
Como vamos ver, no decorrer da narrativa do livro, as qualidades
guerreiras de D. Afonso Henriques, aliadas às virtudes geralmente atribuídas
aos santo fizeram com que os monges de Santa Cruz, apoiados pelos de Alcobaça o
tivessem crismado de bem-aventurado,
designação que se atribui aos beatos e santos. A beatificação e a santidade, de
acordo com as regras estipuladas por Roma, baseiam-se em milagres comprovados e
não em lendas.
Pretende-se levar
ao conhecimento público a face de D. Afonso Henriques, de herói e santo, na historiografia portuguesa.
I - Como
se faz um santo
Etimologicamente, a palavra
hebraica santidade significava
separação (de tudo o que é comum). No conjunto das línguas e religiões semitas
quer dizer separado, puro, brilhante.
É um conceito eminentemente religioso, central, não apenas na religião judaica
e cristã, mas também no hinduísmo, budismo e islamismo. Nesta ampla perspetiva,
santo é aquele que realiza o ideal de uma religião.
No Antigo Testamento, a
palavra santidade é uma das mais
frequentes, indicando a pureza, a isenção de faltas ou pecados. Designa a
divindade do próprio Deus, manifestado em poder e glória (Ex. 15,11; Is.6,3).
Deus é o santo por excelência e tanto seres como as coisas são santas, porque
pertencem e estão consagradas a Deus (Lev. 21,44-45: Ex. 26,33).
No Novo Testamento,
levantou-se o problema escatológico de se saber como é que a santidade pode ser
pensada como um conceito que sendo exclusivo de Deus, se pode estender ao
homem, enquanto criatura justificada pela graça. Os que reconhecem o plano de
Deus e aderem à presença de Cristo no seu autêntico destino, esses são os
santos.
Na linguagem litúrgica e
canónica, chamam-se santos os servos de Deus a quem a Igreja, depois da sua
morte, decretou esse título, permitindo que eles sejam venerados com culto
público universal.
O cardeal José Saraiva
Martins, na qualidade de Prefeito, esteve vários anos à frente da Congregação
para a Causa dos Santos. Na sua obra “Como
se Faz Um Santo”, descreve as fases dos atuais processos da beatificação e
canonização. Mas, nem sempre foi assim.
Ao longo da história, os
processos de beatificação e canonização não tiveram o mesmo rigor. No início da
cristandade, era a devoção popular e autoridade dos bispos que definiam e
proclamavam a santidade dos bem-aventurados,
de tal modo que, no primeiro milénio, aparecem nomes de santos cuja existência
é colocada em dúvida. Nos primeiros séculos do cristianismo, este culto só era
prestado aos mártires, reconhecidos como tais por decisão episcopal. No sec.
IV, o reconhecimento oficial abrangeu também outros bem-aventurados, cujo exemplo era glorificado por intervenção
divina, através de milagres.
Foi o Papa Alexandre III
(autor da bula “Manifestum provatum est”, de 1179, reconhecendo D. Afonso
Henriques rei de Portugal) que, em 1170, reservou à Santa Sé a legitimidade
para canonizar, exclusividade confirmada, mais tarde, pelo Papa Gregório IX
(1227 e 1241), começando então o processo a ser minuciosamente regulado, dando
lugar a numerosos decretos, imprimindo-lhes harmonização e rigor.
Em 1558, o Papa Sisto V
(1585-1590) criou a Congregação dos Ritos, que passou a ser responsável pela
instauração dos respetivos processos e, como tal, encarregada de verificar as
virtudes heróicas e os milagres dos candidatos à beatificação e canonização.
O Papa Urbano III, em 1634,
pelo decreto “Caelestis Hierusalem Cives”
proibiu expressamente “que se prestasse
culto àqueles cuja Santidade não estivesse oficialmente reconhecida por uma
decisão solene da igreja romana, excetuando os que estivessem na posse do culto
público há mais de 100 anos”. Em consequência, para os que tiveram o
referido culto, entre 1170 e 1534, poder-se ia obter de Roma a chamada “beatificação
equivalente”.
Porém, ao longo dos tempos,
as regras processuais foram-se aperfeiçoando ainda mais. Paulo VI, a 8 de Maio
de 1969, pela Constituição “Sacra Rituum
Congregatio”, dividiu a Congregação dos Ritos em duas congregações: “Causa dos Santos e Culto Divino” e
“Disciplina dos Sacramentos”, ficando a primeira com completa jurisdição
sobre os processos de beatificação e canonização. Paulo II, pelas constituições
apostólicas “Divinae Perfectionis
Magister”, de 25 de Janeiro de 1983 e
suas “Normae Servandae in inquisitionis ab Episcopis Faciendis in Causis
Sanctorum”, de 7 de Fevereiro de 1983, dividiu os trâmites processuais em
duas partes: a instrução diocesana e a fase romana. Da legislação de 1983,
resultou a figura importante do relator,
assumindo as funções que anteriormente pertenciam ao promotor da fé e aos advogados
das causas, ficando encarregado de preparar a Posição (do latim Positio-onis) sobre as virtudes ou sobre o
martírio, através da recolha de provas testemunhais e documentais.
Em 28 de Junho de 1988, o
Papa Paulo II alterou o nome “Congregação
da Causa dos Santos” para “Congregação
para a Causa dos Santos”.
Em princípio, o impulso
processual para a beatificação ou canonização pode ser iniciado por qualquer
pessoa ou associação de fiéis, em comunicação dirigida ao bispo da diocese,
desde que decorridos, pelo menos cinco anos após a morte do candidato, salvo em
casos muito especiais, como aconteceu com a Madre Teresa de Calcutá e João
Paulo II, cujo prazo foi dispensado, respetivamente, por João Paulo II e Bento
XVI. O candidato é representado pelo Postulador da Causa, uma espécie de
advogado de defesa, para o representar diante da Congregação para Causa dos
Santos e que irá iniciar o processo diocesano. São nomeados pelo bispo vários
especialistas. Finda esta fase, o processo é enviado para Roma, iniciando-se,
então a fase romana do processo, que
será estudada por três comissões especializadas, compostas por historiadores,
teólogos e prelados da Congregação para a Causa dos Santos. A função do antigo
“cardeal-diabo”, uma espécie advogado de acusação, deixou de ter autonomia e
passou a estar integrada nas próprias comissões. Quando é preciso provar a
existência de um milagre, por intercessão do candidato confessor, é nomeada uma
comissão de médicos e cientistas qualificados, cujas conclusões irão
fundamentar a decisão papal que, por decreto, o declara solenemente beato ou
santo.
Quando se trata de um mártir
é dispensado o milagre, bastando um “decreto
de martírio”, elaborado pela Congregação para a Causa dos Santos,
seguindo-se a marcação da data para a solene beatificação. Com a beatificação,
declara-se a santidade da vida do beato e é permitido o culto público em sua
honra, no âmbito limitado de uma diocese ou de uma instituição eclesiástica”.
Por sua vez, a canonização implica uma declaração solene de santidade e
prescreve o culto público em toda a Igreja. Assim, enquanto a canonização
conduz ao culto universal, a beatificação queda-se pelo culto local, uma e
outra pressupondo a declaração prévia da heroicidade das virtudes praticadas
pelo beato ou santo, provadas pelo menos com um milagre.
Na linguagem canónica existe
uma diferença substancial entre milagre e
graça. Graça, segundo a definição do cardeal Saraiva Martins, é “uma ajuda
divina que se obtém para o bom êxito das atividades do homem, sendo que essa
ajuda não se obtem com a perturbação das leis naturais, mas como um
“suplemento” no seio da própria natureza, uma assistência particular que Deus
concede, intensificando as potencialidades naturais”. Por sua vez, o milagre
manifesta-se como um acontecimento que se distingue do habitual desenvolvimento
da realidade” (vg. as curas). A veracidade do presumível evento miraculoso
faz-se pela dupla via: teológica e científica. A fórmula utilizada pelo Papa
para uma canonização começa com as palavras: “Para honra da Santíssima Trindade, para exaltação da fé católica e para
o incremento da vida cristã …”. Como refere o cardeal Saraiva Martins, no
referido livro, ”hoje como ontem, as beatificações e canonizações têm como
finalidade a glória de Deus e o bem das almas” (op. cit. – pags. 97 e 52-54).
II - A lenda e o mito
1- O mito
Segundo Platão “os mitos são vestimentas poéticas envolventes de grandes
verdades bem dignas de serem meditadas”.
Carl Jung fala das verdades psicológicas do
mito, que ele assegura serem universais e necessárias à saúde do psique humano. Segundo ele,
necessitamos de histórias dos mitos para que haja sentido na confusão reinante
na sociedade e nos nossos espíritos: os mitos dão voz à verdade do nosso
inconsciente. E sempre responderam às pessoas nos seus anseios em conhecer o
significado de um desejo que é especialmente premente, talvez numa sociedade
acentuadamente laica como parece ser cada vez a Ocidental.
Luis de Camões afirma expressamente n`Os
Lusíadas, não ser os feitos do capitão da
Índia, Vasco da Gama, a finalidade do seu canto. Mas sim o louvor da Pátria,
através da ilustre galeria de retratos do passado: reis, chefes militares,
todos empenhados em engrandecer Portugal. Por
isso, Camões elevou o nosso primeiro monarca, o Fundador da Nação, às
proporções de mito “cuja morte
lamentam os rios e montes da Lusitânia que ele fez reino”; e Egas Moniz, o
vassalo fiel, símbolo da nobre virtude cavalheiresca da honra” (cf. Canto III).
A ação dos Lusíadas é a história de Portugal.
Guimarães e a independência de Portugal, com a Batalha de S. Mamede, é
necessariamente o primeiro capítulo.
Segundo Fernando Pessoa, o
mito é “o nada que é tudo” e, por
isso, é susceptível de diversos níveis de significação. Trata-se de uma
narrativa simbólica, sob aspetos fabulosos, que pode fazer-se de tudo: vg. de factos histórcos, da religião e seus
mistérios, do homem e suas paixões, da ciência e suas descobertas etc. De tal modo
que não há nada no campo da natureza e da cultura que não tenha sido ou possa
vir a ser mitificado. E ao longo da história é de tal modo variada que uma
classificação global das suas formas e manifestações se tornam tarefas
demasiado pesadas.
Mas, não são apenas Camões,
Pessoa e Carl Jung que registam o mito. Já muito antes, a memória
historiográfica portuguesa é sustentada por uma grande incidência no quadro da
Reconquista em que os mouros são apresentados como um povo invasor, opressor e
inimigo de Deus. Relativamente a D. Afonso Henriques, nem sempre o “Rei histórico” corresponde ao “Rei lendário e mítico”, presentes na
tradição popular, figura cujo universo conceptual foi sendo construído ao longo
dos tempos. Admitindo embora os exageros de muitos relatos, existe uma
realidade histórica que lhe subjaz e que foi passando na tradição oral, de
geração em geração. E porque a fragilidade da história abriu as portas à
imaginação e à fantasia, assim nasceram as lendas e os mitos, sobre a vida e
obra de D. Afonso Henriques, de tal modo que, por vezes, o mito sobrepõe-se à
história. Mas, a história e a cultura portuguesa só se podem compreender pela
experiência de vida, no confronto entre o passado, o presente e o futuro,
fazendo perceber, deste modo, o sentido das palavras e dos atos, visto que lhes
restitui o contexto global.
2 – A lenda
A palavra lenda deriva do gerúndio latino “legenda”, ou seja, aquilo que devia ser
lido na festa de um santo mártir ou confessor. A “legenda medieval” (leitura medieval) começou, em alguns casos, a
modificar a história dos santos, adicionando ou retirando àquilo que realmente
tinha sucedido, a maior parte das vezes produto da imaginação.
Entende-se, atualmente, como
lenda o relato transmitido por tradição oral de factos ou acontecimentos
encarados como tendo um fundo de verdade, pelo que são objeto de crença pelas
comunidades a que respeitam. Essa narrativa fabulosa pode dizer respeito a uma
qualquer personagem, quase sempre histórica.
São um misto de verdade e fantasia, mas com um grande predomínio da
fantasia. Está localizada numa área geográfica ou numa determinada época,
embora os factos históricos apareçam transfigurados pela imaginação popular. As
lendas, segundo alguns autores, são “uma história não atestada pela história”.
O seu significado foi-se
ampliando, ao longo dos tempos, passando então a abranger narrativas mais ou
menos fabulosas que corriam na tradição oral ou poemas escritos sobre a
história e crenças dos povos cristãos.
Não raramente, a existência
de uma lenda é uma consequência da fragilidade da história, ou dos documentos
que a fundamentaram. Por isso, muitas vezes a lenda nasce num espaço nebuloso
da história, procurando completá-la ou justificá-la, num quadro de
representação do imaginário. E em certos períodos da história, existiram
condições culturais, de mentalidade e ambiente social, que facilitaram a sua
criação e divulgação. A Idade Média foi o período da história que, de longe,
mais lendas criou, onde heróis e santos, factos e lugares se viram aureolados
de uma coroa de maravilhoso.
Embora haja historiadores
inimigos figadais das lendas, a ciência histórica diz-nos que muitos deles não
o são, pois não é certo que “só há lendas onde não há história, nem que não
haja lendas onde há história”. O que se torna importante, para quem as estuda,
é saber identificar o que nelas é realidade ou fantasia. Uma boa parte da
História de Portugal é contada através de lendas: v.g. a batalha de Ourique,
que procura imprimir uma face de sobrenaturalidade à independência de Portugal.
A lenda distingue-se do
mito, embora os limites de ambas as figuras, por vezes, não sejam fáceis de
delimitar, pela sua complexidade, obscuridade e dificuldade, sendo que as três
etimologias apontadas para a raiz do vocábulo também não dão grande auxílio.
Em presença de fenómenos,
cujas causas a sua inteligência não podia compreender, o homem simplificou tudo
o que passasse além da sua compreensão, atribuindo-o a poderes e vontades
estranhas, responsáveis pelo bem e sobretudo pelo mal que deles lhe advinham.
Do estudo dos mitos, resulta que, da multiplicidade dos efeitos, o homem
primitivo deduziu a pluralidade das causas. Daí o vasto sistema mitológico,
cujas formas variaram segundo as tendências étnicas e os carateres do meio.
Tem havido imensas tentativas
para explicar os mitos em termos racionais. Muitas vezes a explicação histórica
não elucida a razão pela qual os mitos se desenvolveram de determinada forma.
Não muito repleto de medos, de solidão e alienação, os mitos podem dar consolo,
através da história de um tempo mais heróico. Alguns mitos são explicativos,
colocando questões e propondo respostas às dúvidas filosóficas. Outros são
etiológicos, explicando as causas e origens de determinado fenómeno. Outros
ainda legitimam determinado povo ou uma família reinante.
Entre a lenda e o mito existe de comum a
porção do natural e irracional que um e outro contêm. Diferem, porém, no grau
de transcendência, do significado e recuo no tempo.
III - D. Afonso Henriques, o
miraculado
Importa distinguir a taumaturgia do messianismo régio. O rei taumaturgo é aquele que tem a faculdade
de fazer milagres. Os reis de França e Inglaterra, desde cedo, assumiram
possuir poderes curativos. Porém, a doutrina histórica peninsular sempre se
inclinou no sentido de que os reis hispanos nunca se arrogaram de tais poderes
taumatúrgicos.
No entanto, relativamente a
D. Afonso Henriques, o autor da Crónica dos Cónegos Regrantes de Sto Agostinho
atribui-lhe poderes taumatúrgicos, manifestados já após a morte.
“… O seu corpo exalando o odor de santidade, foi
objeto, aquando da abertura da sepultura, na presença de D. Manuel, de grandes
manifestações de devoção que se traduziram na busca afanosa de relíquias (…) do
seu corpo, ou do seu vestido, e se não o fecharam logo, todo o levaram e com
esta mesma devoção trazem muitas pessoas em relicários cabelos e partículas de
vestidura do mesmo santo Rei, por cujos merecimentos se veem de Deus socorridos
em suas enfermidades”.
Situação diferente é o messianismo régio, ou seja, quando um
monarca é reconhecido como tendo sido escolhido pela divindade para realizar um
plano positivo para os seus súbditos, concedido a partir da própria divindade,
notando-se sinais supostamente tangíveis e inquestionáveis deste caráter
messiânico. Foi o que aconteceu entre nós com as lendas da cura dos pés de D.
Afonso Henriques e o milagre de Ourique, relativamente à fundação de Portugal.
O Prof. José Mattoso, nos
seus escritos, menciona três faces do Rei Fundador, ao longo da historiografia
portuguesa, com os seguintes significados:
1
– O herói e santo, ao ser curado do
aleijão de nascença (pernas encolhidas), por um milagre de Nossa Senhora e ao
ser beneficiado pelo milagre de Ourique com o aparecimento de Cristo na véspera
da batalha, prometendo-lhe a vitória. Esta imagem deriva exclusivamente de uma
tradição historiográfica iniciada em Santa Cruz de Coimbra, com os “Annales
domni Alfonsi portugallensium regis”.
2 -
A “Gesta de Afonso de Henriques” que
apresenta um retrato, também apologético, mas completamente diferente, tentando
explicar os seus infortúnios e recordar os seus feitos. A Gesta é “produto da
inspiração poética para imitar a épica castelhana, com o intuito de exaltar a
figura do chefe militar e de explicar os seus reveses e de mostrar que os seus
excessos eram temperados pelo grupo dos seus vassalos”.
3 - A imagem dos “Livros de linhagens”, enquanto memória da aristocracia nortenha, é
uma face verdadeiramente depreciativa. Mais tarde, o historiador Oliveira
Martins (1845-1894) haveria de ser extremamente duro para com ele,
classificando-o, além do mais, de “fraco general, seco, astuto, brutal,
pérfido, friamente ambicioso…” etc, etc.
Destas três imagens, José Mattoso conclui que “os cónegos de Santa Cruz de Coimbra, os cavaleiros da mesma cidade e os ricos-homens do Norte não tinham a mesma opinião acerca de D. Afonso Henriques” E conclui, apresentando a face atual do rei Fundador, em que a auréola de santo, de herói e de génio se esbateu (cf. José Mattoso - Naquele Tempo, pags. 455-482 - Temas e Debates – Círculo de Leitores).
Para a análise do processo
de beatificação do Rei Fundador, interessa-nos apenas a historiografia
portuguesa que o apresenta como herói e santo ou quase santo, imagem derivada,
como se referiu, exclusivamente da tradição historiográfica, iniciada em Santa
Cruz de Coimbra. Não se esqueça que
se deve a esses monges os primeiros textos acerca dos feitos de D. Afonso
Henriques e continuaram a ser eles, com os de Alcobaça, quase os únicos até ao
princípio do sec. XVI.
Os cónegos de Santa Cruz de
Coimbra e de Alcobaça, cujos mosteiros foram fundados por D. Afonso Henriques,
fizeram sempre da sua ligação ao Fundador de Portugal um motivo de honra,
assumindo a incumbência e responsabilidade por cultivar a sua memória.
E essas memórias estavam ligadas à cura miraculosa do aleijão de
nascença e à visão miraculosa de Cristo, na véspera da batalha de Ourique.
Sabemos como os milagres ocuparam um lugar de destaque no âmbito da literatura
da Idade Média, sendo que muitos deles chegaram até nós através de uma estreita
ligação a um determinado local de culto, transformado, muitas vezes, em lugar
de peregrinação. Os chamados Livros dos Milagres dão-nos conta desse fenómeno.
1 - O milagre da cura do aleijão
Os detalhes desse milagre da
cura do aleijão nos dão conta os mais antigos anais régios, desde os redatores
da Monarquia Lusitana aos cronistas
das ordens religiosas.
Vejamos o que nos diz Duarte
Galvão (1446-1517) a tal respeito, na Crónica de D. Afonso Henriques:
“Veio a
Rainha a parir um filho grande e formoso, que não podia ser mais uma criatura,
salvo que nasceu com as pernas tão encolhidas, que, pelos pareceres de mestres
e de todos, julgavam que nunca poderia ser são delas.
( …) Logo que
dom Egas Moniz soube que a Rainha parira, cavalgou à pressa, e veio a
Guimarães, onde o Conde D. Henrique estava, e pediu-lhe por mercê que lhe desse
o filho que lhe nascera para o poder criar, como lhe tinha prometido.
O Conde
respondeu-lhe que não quisesse tomar tal encargo porque o filho que Deus lhe
dera, pelos seus pecados, tolhido, de maneira que todos acreditavam que nunca
vingaria, nem viria a ser homem.
E quando
dom Egas viu a criatura tão formosa e com tal aleijão teve grande pena dela.
(… E estando
D. Egas deitado uma noite dormindo, tendo já o menino cinco anos, apareceu-lhe
Nossa Senhora e disse:
- dom Egas,
dormes? Ele acordando com esta visão e voz, respondeu: Senhora quem sois voz?
Ela disse: Eu sou a virgem Maria que te mando que vás a um tal lugar, dando-lhe
logo sinais dele, e faz aí cavar, e acharás lá uma igreja, que noutro tempo foi
começada em meu nome, e uma imagem minha. Faz reconstruir a igreja e a imagem
feita à minha honra, e isto feito, farás aí vigília, pondo o menino que crias
sobre o altar: e sabe que se curará, e será são de todo. E não trabalhes menos,
de aí em diante, a criá-lo bem e a guardá-lo como fazes porque o meu filho quer
por ele destruir muitos inimigos da fé.
… E quando
chegou a manhã, levantou-se logo e foi com muita gente àquele lugar que lhe
fora dito: e mandando aí cavar achou aquela igreja e imagem, pondo em obra
todas as coisas que Nossa Senhora lhe mandar, à qual aprouve, por sua santa
piedade, logo que o menino foi posto sobre o seu altar, foi logo curado e são
das pernas, sem nenhum aleijão, como se nunca tivesse tido nada.
… E por causa deste milagre, foi depois feito
nesta igreja, com muita devoção, o mosteiro de Cárquere”
Cárquere é uma povoação antiquíssima,
como o atestam os inúmeros vestígios da dominação romana, por exemplo, dezenas
de lápides que se encontram no Museu Etnográfico de Lisboa e no Museu Martins
Sarmento, em Guimarães. Atualmente é uma freguesia do concelho de Resende,
distrito de Viseu e diocese de Lamego. A igreja matriz, românica (da 2ª metade
do sec. XII) e monumento nacional e o convento anexo têm origens na lenda da
cura de D. Afonso Henriques quando era criança de 5 anos, por ter nascido com
as pernas “pegadas”.
Trata-se de um mosteiro dos
Cónegos Regrantes de Santo Agostinho e que pertencia ao patronato de D. Egas
Moniz do qual se perdeu quase toda a documentação. Segundo José Mattoso, “como
se trata de um mosteiro pouco conhecido, pode-se presumir que a lenda do
aleijão tenha aí nascido e se destinasse a perpetuar a memória da família de
Ribadouro com o nosso primeiro rei” (cf. D. Afonso Henriques , pag. 372)
2– Milagre de Ourique
Muito se tem falado, discutido e escrito sobre esta lenda. Em relação ao mítico acontecimento, tudo é muito nebuloso, começando, desde logo, pela localização do evento (Oric, Ouric, Ourich, Auric, Aulich – formas do nome Ourique que aparecem nos documentos mais antigos). A única coisa que se pode afirmar com certeza é que, a 25 de Julho de 1139, dia de Sant`Iago, decorreu um encontro bélico, de maior ou menor magnitude, e no qual D. Afonso Henriques se sagrou vencedor, liderando os seus nobres que doravante o aclamaram como rei. Relativamente a tudo o resto, as interrogações são muitas.
2– Milagre de Ourique
Muito se tem falado, discutido e escrito sobre esta lenda. Em relação ao mítico acontecimento, tudo é muito nebuloso, começando, desde logo, pela localização do evento (Oric, Ouric, Ourich, Auric, Aulich – formas do nome Ourique que aparecem nos documentos mais antigos). A única coisa que se pode afirmar com certeza é que, a 25 de Julho de 1139, dia de Sant`Iago, decorreu um encontro bélico, de maior ou menor magnitude, e no qual D. Afonso Henriques se sagrou vencedor, liderando os seus nobres que doravante o aclamaram como rei. Relativamente a tudo o resto, as interrogações são muitas.
Por isso, a nós interessa-nos
aquele meio termo que se tem entre a realidade e o sonho, entre o natural e o
sobrenatural, entre a banalidade das coisas correntes e a poesia das coisas
raras. Por estas razões, voltando as costas às polémicas acesas em torno do
caso, interessa-nos apenas a narrativa tal qual se desenvolveu ao longo dos
tempos. Mas o estudo dos símbolos, das insígnias e dos rituais são importantes
para se compreender as convicções, as ideias e as representações mentais dos
homens da Idade Média.
A narração mais antiga que dá
notícia da Batalha de Ourique é bastante lacónica e, segundo José Mattoso (cf.
Biografia de D. Afonso Henriques, pags. 160-161) aparece na “versão primitiva
da coleção de textos a que Pierre David, o seu melhor editor, chamou “Annales Portucalenses veteres”,
constituídos, tal como o nome “anais” indica, por conjuntos de notícias breves,
acerca de acontecimentos atribuídos a datas bastante precisas, com três fases
redatoriais: notícias até 1079, até 1111 e até 1168, sendo que a notícia acerca
da Batalha de Ourique se encontra na última secção, dizendo apenas o seguinte”:
“Na era de
MCLXXVII, no mês de Julho, no dia de S. Tiago, no lugar chamado Ourique, houve
uma grande Batalha entre os cristãos e os mouros, sob o comando do rei Afonso
de Portugal e, da parte dos pagãos, do rei Esmar, o qual vencido, se pôs em
fuga”.
A mesma notícia, mas já mais
desenvolvida, invocando a “ação heróica, retumbante e esmagadora da batalha”,
aparece nos chamados “Annales D. Alfonsi
Portugallensium regis (Anais de D.
Afonso, Rei dos Portugueses), escritos por um cónego regrante de S Cruz de
Coimbra.
É o próprio D. Afonso Henriques que, em 29 de Outubro de 1152, narra em
Coimbra o acontecimento do milagre de Ourique, perante muitos fidalgos, entre
os quais Mem Peres. E foi a pedido de Mestre Alberto, conselheiro de El-Rei,
que Mem Peres redigiu a seguinte carta:
“ Eu
Afonso, rei de Portugal… diante de vós, Bispo de Braga, Bispo de Coimbra e
Teodósio e de todos mais vassalos do meu reino, juro em esta cruz de metal e
neste livro dos santos evangelhos, em que ponho as minhas mãos, que eu sou
miserável pecador, vi com estes olhos indignos Nosso Senhor Jesus Cristo… e
disse entre mim mesmo: Mui bem sabes, Senhor Jesus Cristo, que por amor vosso
tomei sobre mim esta guerra, contra os vossos adversários, em vossa mão estar
dar a mim e aos meus fortaleza, para vencer os blasfemadores do vosso nome(…).
A que fim me apareceis senhor? Quereis por ventura acrescentar a fé a quem
tanta tem? Melhor é por certo que vos vejam os inimigos que não crêem em vós,
que eu, desde a fonte do baptismo, vos conheci por Deus … O Senhor com um tom
de vós suave que minhas orelhas indignas ouviram, me disse: Não te apareci
deste modo para acrescentar a tua fé, mas para fortalecer o teu coração, neste
conflito, e fundar os princípios do teu reino, sobre pedra firme. Confia,
Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas também todas as outras em que
pelejares, contra os inimigos da minha cruz …. Acharás tua gente alegre e
esforçada, e te pedindo que entres na batalha com o título de Rei… Eu sou o
fundador e o destruidor de reinos e impérios e quero em ti e teus descendentes
fundar, para mim, um império para cujo meio a seja meu nome publicado estre as
nações mais estranhas… E que isto se passasse na verdade juro eu, D. Afonso,
pelos santos evamgelhos, tocados com estas mãos…” (cf. Eduardo Amarante & Rainer Daehnhardt, in “PORTUGAL- Missão Que
Falta Cumprir”, pag. 50 - ed. Zéfiro)
O uso da narrativa na
primeira pessoa, ou seja, a atribuição da narrativa ao próprio rei é explicada
por José Mattoso, num caso semelhante, relacionado com a tomada de Santarém, do
seguinte modo: “Pode-se sugerir, no entanto, que o autor do texto tivesse
conhecido um escrito do género do De Expugnatione ou da tríplice carta dos
cavaleiros teutónicos, e, sugestionado pelos textos epistolares, pretendesse
usar o mesmo recurso literário; por isso, adopta o discurso na primeira pessoa,
mas sob a forma de notitia. A
atribuição do relato ao próprio rei destinar-se-ia a conferir maior autoridade
e solenidade ao seu escrito (cf. Reis de Portugal- Afonso Henriques, pag.
238-Temas & Debates
No Livro dos Arautos (1416)
consta o seguinte:
“ E porque antes daquele combate, tal rei
cristão vira numa aparição o Nosso Senhor Jesus Cristo, com as cinco chagas, e
pelo auxílio da graça do mesmo Cristo, venceu esses cinco reis infiéis…”
Esta versão também se encontra na Crónica de
1419, atribuída a Fernão Lopes.
Em 1485, Vasco Fernandes de
Lucena, embaixador de D. João II, junto do Papa Inocêncio III, fala também no milagre de Ourique:
“cercado pela multidão muçulmana, Cristo em
pessoa veio em socorro do nosso primeiro monarca, incutindo-lhe a fé na
vitória”.
Assim, a evolução do tema
verifica-se pela narrativa que o milagre foi tendo, a partir do sex. XV,
evoluindo para a versão que se encontra no texto de Duarte Galvão, passando
pelas narrativas amplificadas da Crónica de Cister, de Frei Luís de Brito, e da
Monarquia Lusitana, de Frei António
Brandão.
Vejamos o que nos diz um
excerto da Crónica de Duarte Galvão:
“Quando
finda a tarde, depois que o príncipe fez pôr as guardas no seu arraial, o
eremita que estava na ermida que acima dissemos, veio até a ele e disse-lhe:
Príncipe
dom Afonso, Deus te manda por mim dizer que, pela grande vontade e desejo que
tens de o servir, quer que tu sejas ledo e esforçado: ele te fará amanhã vencer
el-Rei Ismar e todos os seus grandes poderes. E mais te manda por mim dizer
que, quando ouvires uma campainha que na Ermida está, tu sairás fora e ele te
aparecerá no céu, assim como padeceu pelos pecadores. E já antes disto, ele
tinha feito e dotado com grande devoção o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra…
Desde que o
eremitão partiu, o príncipe dom Afonso pôs os joelhos em terra, e disse:
- Oh bom
senhor Deus, todo poderoso, a que todas as criaturas obedecem, sujeitas a teu
poder e querer, a ti só conheço e agradeço… E tu, Senhor, sabes que por te
servir passo muita fadiga e trabalho contra estes teus inimigos, com os quais,
por serem contra ti, eu não quero paz nem quero tê-los como amigos.
E desde que
isto disse, com outras palavras muito devotas encomendou-se a Deus e à virgem
gloriosa, Sua mãe. Então encostou-se e adormeceu.
E quando
foi uma meia hora antes da manhã, tocou a campainha como o eremita dissera e o
príncipe saiu fora da sua tenda, e segundo ele mesmo disse e deu testemunho em
sua história viu Nosso Senhor em cruz, na maneira que lhe dissera o eremitão.
Adorou-o muito devotamente com lágrimas de grande prazer, confortado e
animador…dizendo:
- Senhor,
aos hereges é que preciso apareceres, pois eu sem nenhuma dúvida creio e espero
em ti firmemente.
…Neste
aparecimento foi o príncipe dom Afonso certificado por Deus de sempre Portugal
haver de ser conservado em reino… Tudo é para crer que Nosso Senhor quereria e
faria a Príncipe tão virtuoso, sobre quem fundara reino e Reis tão virtuosos
para o seu serviço e da Santa fé católica, e por suas coisas andarem por culpas
dos tempos, em mui falecida lembrança de escritura quis Deu, segundo parece,
que ficassem algumas em confirmada fama”.
No
sec. XVI, encontramos em várias fontes, referências ao milagre de Ourique, como
origem do brasão nacional, como é o caso da crónica de Duarte Galvão (capítulos
XV a XVII) e de Os Lusíadas, de Luís de
Camões que registou a lenda, nos seguintes termos:
A
matutina luz, serena e fria
As estrelas do Polo já apartava
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele, adorando Quem lhe aparecia,
Na fé todo inflamado, assim gritava:
Aos infiéis, Senhor, aos aflitos,
E
não a mim, que creio o que podeis.
(Canto III, 45. Veja-se também o 53 e 54)
(Canto III, 45. Veja-se também o 53 e 54)
Esta narrativa miraculosa,
haveria de manter-se enraizada durante cinco séculos, até Alexandre Herculano,
altura em que este historiador, em 1846, publicou o I volume da sua História de
Portugal, desvalorizando e desmitificando o “milagre de Ourique”. Colocou a
batalha em lugar secundário para dar ênfase à Batalha de S. Mamede. Esta opção
foi objeto de duras críticas por parte
de setores mais conservadores da intelectualidade da época, que o apelidaram de
“inimigo da fé e da verdade”, e “detrator das glórias nacionais”. Mas já
muito antes de Herculano, a realidade histórica do facto tinha sido rejeitada,
vg, por Luís António Verney, na sua obra “Verdadeiro
Método de Estudar”, publicada em 1746, precisamente 100 anos antes. Só que
o ambiente cultural do tempo de Verney era totalmente diferente do ambiente
explosivo criado pelo liberalismo da época.
Alexandre Herculano,
chamando “fábula à lenda”, contestou a historicidade da aparição de Cristo com
o fundamento de que “A Vida de S. Teotónio”, escrita no sec. XII, por um frade
crúzio, contemporâneo da época de D. Afonso Henriques, ao narrar a batalha de
Ourique, embora se refira aos cinco Reis Mouros, não regista nenhuma aparição.
E a Crónica Geral de Espanha de 1344, do Conde D. Pedro, também não. Por isso,
é que os autores modernos afirmam que a aparição de Cristo em Ourique é um
“acontecimento” que surgiu por razões políticas.
Mas, na marcha da Reconquista,
a face miraculada de D. Afonso Henriques aparece também na tomada de Santarém,
a 7 de Março de 1147. Segundo nos conta
o padre Inácio de Vasconcelos, na monografia, História de Santarém Edificada, publicada em 1740:
“ao cabo de paciente arremetida, rompida a
resistência adversa e derrubadas as portas da cidade, Afonso Henriques dobrou
os joelhos em terra e agradeceu a ajuda divina que na véspera se lhe
manifestara”. (Ver outros relatos, em História Prodigiosa de Portugal – Mitos e
Maravilhas, de Joaquim Fernandes - QuidNovi).
Mas, a face miraculada de D.
Afonso Henriques verificou-se também no monumento funerário que ficaria patente
em Santa Cruz de Coimbra, cujos alicerces foram patrocinados pelo Rei Fundador,
em 28 de Julho de 1131. D. Manuel I, considerando o túmulo demasiado modesto,
em 1515, procedeu à sua reforma. A trasladação solene das ossadas régias de D.
Afonso Henriques e seu filho Sancho I, foi efetuada a 16 de Julho de 1520. O
monumento funerário tornou-se parte lógica maravilhosa associada ao lendário do
Fundador.
D. João Homem, cavaleiro fidalgo
da casa de D. Manuel I, conta-nos o que “aconteceu” no momento da deposição do
cadáver real, no novo túmulo, narrativa transcrita por frei Timóteo dos
Mártires, outra testemunha presencial, na sua Crónica de Santa Cruz:
“O corpo do devoto Rei Afonso Henriques achou-se
inteiro, incorrupto, a carne seca, a cor pálida e macilenta, mas de aspecto
severo, que parecia estar vivo, do qual sahia cheiro suavíssimo. Tinha vestida
uma garnacha comprida de pano de lam branca, e huma sobrepeliz de pano de
linho. Isto tão inteiro e são como se naquela hora lhas vestissem. Era El-Rei
de estatura de dês palmos em comprido (cerca de dois
metros de altura) e dous e meio de largura pellos peitos (cerca de meio metro)
e a perna que quebrou nas portas de Badajós era mais curta que a outra três
dedos”.
Por sua vez, Frei Nicolau de
Santa Maria, carrega ainda mais nos tons dramáticos, relativamente à cena de
trasladação, dizendo que
“ D. Manuel
sentou o corpo de D. Afonso Henriques num trono, com a espada na mão e as
pessoas beijavam a mão do cadáver”.
D. Miguel, em 1832, decidiu
abrir o túmulo pela terceira vez, relato feito pela Gazeta de Lisboa, repetindo
que o cadáver real tinha dez palmos de altura, confirmando o relato de Frei
Timóteo dos Mártires, sendo que tal facto não garante a realidade.
Em 2007, foi requerida nova
abertura do túmulo, para um pretenso estudo genético, mas tal solicitação foi
inviabilizada pelo Ministério da Cultura, sob a alegação de existir perigo em
causar danos irreparáveis na estrutura tumular.
Os textos acima mencionados
refletem a mutação da memória do Rei Fundador ao longo dos tempos, evoluindo de
uma imagem de Rei santo, associada ao corpo incorrupto, para uma visão mais
racional ao substituir a santidade pela dimensão humana. Por sua vez, a
grandeza do corpo representa a parte do mito em que através dos tempos assumiu
a descrição da estatura do monarca, como símbolo de força e valentia.
A fantasia do tamanho do
cadáver, segundo José Mattoso, significa que “um grande homem deveria
corresponder um homem grande”. O seu corpo devia representar a grandeza do
Fundador de Portugal que havia sido protegido por Deus.
Os tempos das origens de
Portugal, na escassez de documentos coevos e, por vezes, pouco esclarecedores,
ficaram abundantemente registados através de lendas e símbolos que perpetuam
esse facto histórico – ainda hoje, em
alguns pontos enigmático a qualquer análise racional – que foi a criação de
um reino independente. E perante essa escassez de documentos importa continuar
as investigação
3 - O milagre de Ourique e o historiador Alexandre Herculano
3 - O milagre de Ourique e o historiador Alexandre Herculano
No primeiro volume da História de Portugal, publicado em 1846, Alexandre Herculano (1810-1877) dedica apenas uma nota ( nota XVI) ao milagre de Ourique nos seguintes termos:
“ Discutir todas as fábulas que se prendem à jornada de Ourique fora processo infinito. A da aparição de Cristo ao príncipe antes da batalha estriba-se em um documento tão mal forjado que o menos instruído aluno de diplomática o rejeitará como falso ao primeiro aspecto (o que facilmente poderá qualquer um verificar no Arquivo Nacional, onde hoje se acha. Parece, na verdade, impossível que tão grosseira falsidade servisse de assunto a dicussões graves. Quem, todavia, desejar conhecer a impostura desse documento famoso consulte a memória de Frei Joaquim de Santo Agostinho”.
Até Herculano, a historiografia portuguesa, baseando-se na“tradição constante e multissecular”, apresenta o milagre de Ourique como facto verdadeiro, pelo que a declaração de Herculano, acima transcrita, originou, desde logo, fortes reações por parte do clero, cuja polémica iria prolongar-se durante onze anos (1846-1857).
Assim, pouco tempo depois da publicação do vol. I da História de Portugal de Herculano (que chegou apenas ao vol. IV (1853), surge um opúsculo, da autoria de António Lúcio Maggessi Tavares, intitulado “Demonstração Histórica e Documentada da apparição de Christo nos campos de Ourique, contra a opinião do Snr. Alexandre Herculano”, onde defende a tradição do milagre de Ourique como verdadeira e fundamento essencial da fundação da nacionalidade. Segundo Maggessi não era crível que “uma tradição como a de Ourique, tradição nacional secularmente transmitida e aceite, não correspondesse a um facto verídico, até porque tal significava, em última análise, o subestimar da boa fé crítica, inteligência, honra e até amor próprio dos nossos maiores que a veicularam e tiveram por verdadeira”.
Maggessi pretendia defender essa “verdade histórica” com testemunhos coevos dos acontecimentos: o testemuinho de S. Bernardo de Claraval e uma cópia coeva do auto de juramento de D. Afonso Henriques, que não passava de um traslado do juramento constante da III parte da Monarquia Lusitana de António Brandão (1).
O denominado argumento de S. Bernardo consistia no facto de, nos seus sermões, respeitantes à paixão de Cristo, existir uma referência explícita ao milagre de Ourique, testemunho esse considerado contemporâneo do acontecimento. Porém, Herculano, no seu opúsculo Eu e o Clero, alega que essa referência explícita, falsamente atrbuida a S. Bernardo, datava do sec- XVIII.
Em 1847, surge novo opúsculo, desta vez da autoria de José Diogo da Fonseca Pereira, intitulado “O Primeiro Tomo da História de Portugal por Alexandre Herculano, considerado em relação ao Juramento d`Affonso Henriques”. onde defende que a fundação da nacionalidade só encontra explicação no Juramento de D. Afonso Henriques (do qual constam as promessas de Deus ao nosso primeiro monarca) e no milagre de Ourique. Para o efeito, enumera vários argumentos com a finalidade de provar a verdade do milagre e a pertinência da tradição de Ourique. A conceção de história destes dois autores estavam, deste modo, em flagrante contraste com a conceção de história de Herculano. Para eles, Ourique era o simbolo máximo de uma interpretação comum do passado, que, em certa medida A. Herculano vinha destituir de sentido. Assim, a batalha e o aparecimento de Cristo marcam o início da nacionalidade e a instauração da monarquia. A atitude de Herculano perante Ourique representa aos olhos dos seus adversarios a negação do momento fundador da nacionalidade.
A discussão atinge o seu auge com a publicação, em 1850, do opúsculo da autoria de Herculano, “Eu e o Clero. Carta ao Exmo Cardeal-Patriarca”, como resposta aos aos violentos ataques por parte do clero e alguma comunicação social.
Em 1850, a polémica agravou-se com a publicação de um longo texto, da autoria do Padre Francisco Recreio, intitulado “Justa Desaffronta em Defesa do Clero, ou refutação analytica do impresso Eu e o Clero, Carta ao Exmo Cardeal Patriarcha por A. Herculano”. Em 1854, o mesmo autor publica “A Batalha de Ourique e a História de Portugal de A.Herculano”, classificando a carta “Eu e o Clero” de “abominável e indigna de circular em um paiz cathólico, sendo “irreverente pela sua forma, illusória e ridicula pelo seu intuito, ultrajadora e parcialmente injusta em sua crítica, indisputavelmente anti-patriotica e em algumas das suas expressões anti-catholica”.
Herculano respondeu, em tom irónico, com o opúsculo intitulado “Cartas ao muito reverendo em Christo Padre Francisco Recreio…por um moribundo”. A intervenção de A. Herculano na polémica, a propósito do milagre de Ourique, desenvolver-se-ia através de cinco textos, em forma de opúsculos.
Como bem refere Isabel Buescu, “os adversários que tomaram parte nesta polémica oitocentista, defendem que a dupla vertente da batalha de Ourique o o aparecimento de Cristo a Afonso Henriques é a pedra angular da monarquia portuguesa, da qual não é possível dissociar o estabelecimento da independência e da identidade nacionais. E como tal o defendem perante uma atitude “de Herculano que não só nega a intervenção divina antes da batalha, como põe em causa a sua lendária grandeza como confrontação militar. Trata-se, de facto, de uma atitude verdadeiramente “iconoclasta”, pois significa a destruição de uma determinada imagem concretizada no mito de Ourique, que se vê esvaziada de sentido através da posição de Herculano”. (cf. Isabel Buesco- in O milagre de Ourique e a História de Portugal de A. Herculano – Uma Polémica Oitocentista – Ed. do Instituto Nacional de Investigação Ciêntifica – 1987).
Note-se, no entanto, que a verosimilhança do milagre de Ourique tinha já sido questionada, no sec. XVIII, por Luis António Verney, na sua obra intitulada “Verdadeiro Métodode Estudar”(1746) e ainda, por João de Barros e Damião de Góis. Só que o ambiente cultural do tempo de Verney era totalmente diferente do ambiente explosivo criado pelo liberalismo da época. Refira-se ainda que o Padre António Vieira recuperou o milagre de Ourique e a aparição de Cristo para apoiar a construção do seu pensamento messiânico e garante do Quinto Império.
Recorde-se ainda que, nos anos vinte do século passado, embora não com tanto vigor, como aconteceu com a polémica oitocentista, a questão voltou à discussão pública, envolvendo personalidades como António Cabreira (que defendeu a probabilidade do milagre de Ourique), Alfredo Pimenta, David Lopes, Vitorino José César e Tomás Vilhena.
A conceção de história dos defensores da veracidade do milagre de Ourique estava em flagrante contraste com a conceção de história de Herculano.
A “Advertência” que Herculano faz no início do vol. I da História de Portugal aponta para o “estatuto de ciência”, onde o objetivo fundamental é a procura da verdade, geradora da única estratégia: “o rigor, a pesquisa documental e a anulação de interesses capazes de obscurecer e distorcer a verdade histórica”. Tal visão contrasta com a visão da história tradicional cuja última finalidade é o patriotismo e a exaltação nacional, que, levados ao extreme, conduzem à “opacidade e distorção da história”.
O conjunto de factos, elucidados a partir dos documentos medievais dos nossos arquivos, constitui uma das mais notáveis contribuições de A. Herculano. O seu trabalho e segurança é tal que ainda hoje se segue o historiador no essencial, principalmente no domínio dos factos políticos e sociais. Algumas das suas teses foram contestadas, certas afirmações foram corrigidas, mas a construção da história é magnífica e ainda hoje, mais de 150 anos decorridos, o investigador é obrigado a reconhecer, mesmo quando divirja, a grande capacidade de observação, visão e seriedade do historiador. A suas iniciativas no campo da historiografia deram-lhe o estatuto de polemista e criador da historiografia científica em Portugal, cujos princípios são a sã crítica , sobretudo a veradidade e fidelidade na exposição dos factos, conforme o exame conscencioso das fontes, a imparcialidade e objetividade.
Com Alexandre Herculano a
história nacional deixou o plano transcendente, sobrenatural para se fixar na
sua inteira dimensão humana. IV - O processo de canonização de D. Afonso Henriques
As lendas miraculosas
explicam a razão pela qual, nos princípios do sec. XVI, os cónegos de Santa
Cruz de Coimbra iniciaram o processo de beatificação de D. Afonso Henriques,
“sem provanças de estilo” e “sem proteção real”, chegando a enviar a Roma
alguns religiosos que mais empenho tinham posto nas suas iniciativas.
Em 1556, o prior de Santa
Cruz de Coimbra, juntamente com os seus cónegos, promoveu mais uma vez a
beatificação de D. Afonso Henriques, mas, desta vez, fazendo “provanças do
estilo”, com autorização do bispo conde D. João Soares e com o apoio do rei D.
João III.
Como se vê, já não era esta
a primeira tentativa de beatificação, porquanto nas anteriores, embora
promovidas sem “provanças de estilo” e sem a proteção real, se havia tentado.
Mas, em nenhuma delas foi obtido deferimento na Cúria Romana.
Registe-se o facto singular
de, não obstante a inação de Roma, terem sido exaltadas as virtudes guerreiras,
unidas às virtudes geralmente atribuídas a um santo, condição bastante para que
os monges de Santa Cruz de Coimbra, apoiados pelos monges de Alcobaça, o
tivesses qualificado de bem-aventurado,
sendo-lhe composta uma comemoração com antífona e oração, “como se a igreja o
houvera catalogado na lista dos santificados”, factos que Frei António Brandão
assinala no final da III parte da Monarquia
Lusitana.
Os textos da antífona (canto
alternado de dois coros) e da oração, escritos em latim e a seguir traduzidos,
são os seguintes:
Oração
Ó Deus, dulcíssimo doador de todos os bens, junto de quem está o mais alto poder dos homens e dos Reinos e que levaste ao trono da Lusitânia o Beatíssimo Rei Afonso e distinguiste neste
Mundo com grandes benefícios: concedei, vos pedimos, que, pelos méritos dele, este nosso Reino, os Reis, os Príncipes gozem sempre da tranquilidade e da desejada a paz e, nós, teus suplicantes, pelos frutos de todas as virtudes sigamos assim o estilo de vida do Rei Afonso, para que mereçamos fazer parte, igualmente, da glória.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, teu filho, que contigo vive e reina na unidade do Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém
Antífona
Invencível Rei Afonso, corajoso combatente, defensor santíssimo do nosso Reino, amparado desde criança na fé, pela Bem-aventurada Virgem Maria, nossa Senhora, mãe de Deus, de cuja predição e patrocínio recebeste a cura dos ossos das pernas; e, quando chegaste à idade adulta, pelas armas da Fé, premunido com o capacete da Esperança e inflamado pelo zelo da caridade combateste contra vinte Reis Mouros e com o imperador Miramolim, com insígnias presenteadas, mas com um pequeno exército e viste Cristo, nosso Senhor, pregado na Cruz, pela calada da noite submeteste toda a Lusitânia ao jugo da fé e sublimaste o nome do Reino: intercede por nós junto de Deus com as tuas preces junto de Deus para que sejamos puros de espírito, o nosso Reino seja florescentíssimo e isento de toda a calamidade.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, teu filho, que contigo vive e reina na unidade do Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém
Antífona
Invencível Rei Afonso, corajoso combatente, defensor santíssimo do nosso Reino, amparado desde criança na fé, pela Bem-aventurada Virgem Maria, nossa Senhora, mãe de Deus, de cuja predição e patrocínio recebeste a cura dos ossos das pernas; e, quando chegaste à idade adulta, pelas armas da Fé, premunido com o capacete da Esperança e inflamado pelo zelo da caridade combateste contra vinte Reis Mouros e com o imperador Miramolim, com insígnias presenteadas, mas com um pequeno exército e viste Cristo, nosso Senhor, pregado na Cruz, pela calada da noite submeteste toda a Lusitânia ao jugo da fé e sublimaste o nome do Reino: intercede por nós junto de Deus com as tuas preces junto de Deus para que sejamos puros de espírito, o nosso Reino seja florescentíssimo e isento de toda a calamidade.
Roga por nós, teus servos, invencível Rei Afonso.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
Em 1728, o padre José Pinto Pereira publicou, em Roma, um pequeno livro a que chamou “APPARATUS HISTORICUS…”, onde apresenta dez argumentos para comprovar a santidade de D. Afonso Henriques. O livro foi então oferecido ao Papa Bento XIII e ao nosso rei D. João V, com o objetivo de obter os seus apoios e de ativar, de novo, os trabalhos para a beatificação e promoção do culto a D. Afonso Henriques. A causa, porém, como era de prever, não teve seguimento.
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
Em 1728, o padre José Pinto Pereira publicou, em Roma, um pequeno livro a que chamou “APPARATUS HISTORICUS…”, onde apresenta dez argumentos para comprovar a santidade de D. Afonso Henriques. O livro foi então oferecido ao Papa Bento XIII e ao nosso rei D. João V, com o objetivo de obter os seus apoios e de ativar, de novo, os trabalhos para a beatificação e promoção do culto a D. Afonso Henriques. A causa, porém, como era de prever, não teve seguimento.
Em 1752, alguns trabalhos
análogos foram iniciados em Roma. Desses
trabalhos nos dá conta a Gazeta de Lisboa de 1753 nº 1, de 4 de Janeiro,
nos seguintes termos: “Na vila de
Guimarães se ajuntou a Academia Vimaranense, no dia 6 de Dezembro, aniversário
do falecimento de D. Afonso Henriques, natural da mesma vila; e aplaudiu com
eloquentes discursos e discretas poesias, a notícia de se tratar em Roma da sua
beatificação”.
A Academia Vimaranense foi fundada
a 3 de Dezembro de 1724 pelo erudito fidalgo Tadeu Luis António Lopes de Carvalho
Afonseca e Camões, presidindo à primeira sessão o dr. Francisco da Cunha
Rebelo, cónego e vigário geral que no seu discurso de abertura instigou os
académicos ao culto das letras pátrias, em honra do país em geral e do berço da
monarquia em espacial. Ao longo da sua existência, realizaram-se grandiosas e
solenes sessões, tratando variados e importantes assuntos, em prosa e em verso,
na língua nacional e estrangeira.
A História Genealógica da
Casa Real Portuguesa, da autoria de António Caetano de Sousa (1674-1759), referindo-se a D. Afonso Henriques regista o seguinte:
“ Praticou acções tão esclarecidas para o
Céu, que por elas é ainda mais respeitado na terra, sendo comummente chamado
Santo Rei D. Afonso Henriques. Teve culto em tempo antigo, que mereceu, como se
afirma, porque Deus o honrou com prodígios. Na Cúria Romana se trata da sua
beatificação ao presente e com a sagrada declaração da Santa Sé Apostólica,
passará dos corações de seus Vassalos a culto público a sua virtude. O Doutor José
Pinto Pereira, que muitos anos assistiu na Cúria como Expedicionáro Régio.
Varão douto, imprimiu em Roma, no ano de 1728, um livro, com o título “Apparatus Historicus de Argumentis Sanctitatis Regis Alphonsi Henriques”,
dirigido ao Santo Padre Bento XIII, no qual em dez argumentos mostra as
virtudes heróicas e Santidade deste Príncipe. Este livro depois de ser aprovado
por ordem do Mestre do Sacro palácio, por dois Consultores da Congregação de
Ritos, o deu o seu Autor a todos os Cardeais, e muitos lhe seguraram, que era
abundante a prova para este Rei ser beatificado; porém, não sei se neste
importantíssimo negócio se trata com aquela eficácia, que merecia o Fundador da
Monarquia Portuguesa”.
Não compete ao historiador e investigador contribuir para a formação
dos mitos e muito menos tentar dar-lhes uma aparência de realidade. Mas, muito
se tem falado, discutido e escrito sobre as famosas lendas da cura do aleijão e
do milagre de Ourique. Porém, como atrás se referiu, aqui interessa-nos apenas
o meio termo que se situa entre a realidade e o sonho, entre o natural e o
sobrenatural, entre a banalidade das coisas correntes e a poesia das coisas
raras. Por essa razão, voltando as costas às acesas polémicas em torno dos
milagres, ficam apenas registados, como factos históricos, os esforços e
tentativas feitas, ao longo dos tempos, para a beatificação de D. Afonso
Henriques.
Certamente que D. Afonso
Henriques se não foi santo, como o desejavam os monges de Santa Cruz de Coimbra
e Alcobaça e José Pinto Pereira, também não foi um “chefe de bandidos, obcecado
pela paixão da guerra”, “um chefe medíocre, brutal e pérfido”, como sustenta
Oliveira Martins.
Diremos que dos factos
praticados ao longo da sua vida, ressalta, seguramente, a faceta de militar, de
político e de diplomata. Como militar ganhou praticamente todas as batalhas em
que se envolveu, conquistando a independência de Portugal. Como político e
diplomata obteve o reconhecimento dessa independência junto de monarcas e da
Cúria Romana.
Como se disse, são conhecidos
os amargos de boca que Alexandre Herculano (1810-1877) teve de suportar por
desmitificar o alegado milagre de Ourique. Apesar disso, são eloquentes as suas
palavras a respeito do Rei Fundador, escritas no final do II livro da sua História
de Portugal : “o afeto nacional chegou a
atribuir a Afonso Henriques a aureola dos santos e a pretender que Roma desse
ao fero conquistador a coroa que pertence à resignação do martir. Se uma crença
de paz e de humildade não consente que Roma lhe conceda essa coroa, outra
religião também veneranda, a da pátria, nos ensina que, ao passarmos pelo
pálido e carcomido portal da igreja de Santa Cruz, vamos saudar as cinzas
daquele homem, sem o qual não existiria hoje a nação portuguesa e, porventura,
nem sequer o nome de Portugal.
V - Sumário dos argumentos do Apparatus Historicus
(tradução)
Primeiro argumento
Ou ndício da santidade do religiosíssimo Rei Afonso Henriques é: ter-lhe
aparecido Cristo Senhor, prometendo a vitória sobre os infiéis; e por ele, como
sobre uma firmíssima pedra, foi fundado um império.
Segundo argumento
Ou fundamento da santidade do grande Rei Afonso é: ter sido pedido a Deus, após uma longa inação, quer por pias preces dos súbditos, quer por
eficazes orações a S. João Cirita, a eliminação da perfídia e propagação da fé.
Terceiro argumento
Ou indício acerca da
santidade é: ter a Mãe de Deus restituição ao Rei Afonso, enquanto criança, o uso expedito dos
pés, que a natureza lhe havia negado, para que na idade adulta, como seu próprio soladado, esmagasse a serpente e o basilisco
Africanos.
Quarto argumento
Ou indício da
santidade do ínclito Afonso consiste: ter sido a visão da Rainha dos Homens e dos Anjos a levar-lhe
ajuda nas batalhas contra os Mouros; e também os Santos Anjos a lutar por ele
na linha da batalha; de igual modo, S. Bernardo, a quem o Rei se ligara por
promessa, a edificar o Mosteiro, ter-lhe anunciado, aparecendo-lhe, que, fixada a data
da luta entre ambas as partes, para segurança do evento, numa curta madrugada,
havia de tomar de assalto Santarém.
Quinto argumento
Ou indício da
santidade do invicto Rei Afonso fundamenta-se: com grande zelo de fé, pela qual em
toda a Lusitânia, com soldados esforçados e com gloriosos feitos, esmagou e
aniquilou os inimigos da Cruz de Cristo.
Sexto argumento
Ou fundamento da
santidade do invicto Rei Afonso deduz-se: da ínclita fundação de duas Ordens militares,
Avis e Ala, do modo que, a partir da sepultura, através daqueles sagrados
soldados, vencesse os infiéis.
Sétimo argumento
Ou indício da
santidade do Rei Afonso, deduz-se: da pia fundação, de 150 célebres Basílicas,
ricos Cenóbios e outros Templos, em terras conquistadas aos tiranos infiéis,
para prestação do culto e louvor a Deus, com sacrifícios e louvores, sem edificar, para si, nenhum Palácio
em todo o reino.
Oitavo argumento
Ou indício da
santidade do Rei Afonso extrai-se: do egrégia oferta, com sensos de ouros anuais pela qual se constituiu, a si e ao reino, tributário do príncipe dos Apóstolos e da Igreja Romana, assim como ao Mosteiro Santa
Maria de Claraval.
Nono Argumento
Ou indício da
santidade do Rei Afonso infere-se: da suma piedade e do respeito pelos vigários
de Cristo; da pia afeição para com todos os Santos Varões, para os quais o
Devoto Príncipe se dirigia frequentemente, quer na paz, quer na guerra, quer
fora, quer no interior dos conventos, divulgando, constantemente, de viva voz e
por escrito, promovendo o culto a Deus e divulgando a Fé, para remissão da sua
alma.
Décimo
argumento
Ou fundamento da santidade do Rei Afonso Henriques resulta e
desenvolve-se: das virtudes heróicas na sua vida de trabalho e favores celeste
conferidos por Deus a si próprio e de prodígios depois da morte; como também do
admirável Corpo incorrupto, com suavíssimo odor; e ainda da fama póstuma que se
ouve por todos os séculos: Príncipe Católico, de ínclitas recordações e honra
da memória; diligente propagador da fé Ortodoxa; filho devoto da Sacrossanta
Igreja Romana; intrépido aniquilador dos inimigos da Cruz de Cristo; Varão admirador
de todas as virtudes do género humano; embelezador das coisas públicas; modelo
de futuros Reis; Pio, Beato e Santo.
V - Algumas notas biográficas sobre os principais
intervenientes no processo de canonização
1- D. Afonso Henriques
De acordo com a mais recente historigrafia portuguesa, o fundador de Portugal nasceu no palácio real (palatium regale), da então Vila Vimarannes.
Para comprovar o seu nascimento em Guimarães, na falta de certidão, temos de nos socorrer de prova indireta. Enquanto a prova direta demonstra, de forma imediata, que um determinado facto ocorreu, a prova indireta assenta em dados circunstanciais que, quando conjugados, podem levar à convicção da ocorrência do facto que se investiga.
E vejamos então quais são esses factos, relativamente ao local de nascimento:
1 - A residência do Condes Portucalenses, desde Mumadona, sempre foi em
Guimarães, só mudando para Coimbra em 1131, com D. Afonso Henriques.
2 – Uma tradição oral e secular, especialmente a partir do secs. XV/XVI, recebida
por Duarte Galvão, localiza o nascimento de D. Afonso Henriques em
Guimarães. Com efeito, na Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, Duarte
Galvão (1445-1517) afirma:
“quando Egas Moniz soube que a Rainha parira cavalgou à pressa, e
veio a Guimarães onde o Conde estava e pediu-lhe por mercê que lhe desse o
filho que nascera, para o haver de criar, como lhe havia prometido”.
A transmissão oral da tradição surge, pois, como uma possibilidade cuja
verosimilhança se afigura poder ser aceite sem qualquer dúvida. Negar o
nascimento do infant, em Guimarães, é negar a possibidade da transmição
oral das tradições e da sua veracidade, antes da consagração pela palavra
escrita.
3 - Documento importante a favor de Guimarães é também a doação, outorgada
por D. Teresa, em 1111, aos franceses moradores em Guimarães, de um
campo situado junto do “nosso paço real” (palatium nostrum regale) e de
quem D.Teresa diz: “escolhestes habitar connosco” (elegistis nosbiscum
commorari”). A conjugação das duas referências apontam para a residência
oficial de D. Teresa em Guimarães.
4 - Os principais acontecimentos de 1126-1128, nomeadamente a revolta contra o
governo de D. Teresa, o cerco ao Castelo de Guimarães por Afonso VII de Leão
e a batalha de S. Mamede ocorreram todos em Guimarães.
5 - A ameaça moura nas zonas de Lamego, Viseu, Seia e Coimbra aconselhava a
manutenção da residência Condal em Guimarães, que só mudou para
Coimbra, como se disse, em 1131, com D. Afonso Henriques.
6 - Ao longo dos tempos, sempre se ensinou nas escolas portuguesas que D.
Afonso Henriques nasceu em Guimarães, facto que se integra na tradição oral
e escrita a que se refere o nº 2 supra.
E quanto à data do nascimento?
1 - Ao longo dos tempos, por vezes, sem quaisquer justificações, a historiografia portuguesa foi apresentando várias datas para o nascimento de D. Afonso Henriques: 1100-1105, 1106, 1109, 1110 e 1111.
Acontece que, na sequência de uma polémica, gerada acerca do local de nascimento de Afonso Henriques, o historiador Armando de Almeida Fernandes, que sempre foi a favor de Guimarães, começou a defender Viseu como local de nascimento, no seu livro intitulado “Viseu, Agosto de 1109, Nasce D. Afonso Henriques”.
A 29 de julho de 1109, é outorgada a doação do mosteiro de Lorvão à Sé de Coimbra, à qual, segundo Almeida Fernandes, D. Teresa não assistiu por estar retida em Viseu, em consequência da gravidez de D. Afonso Henriques, que iria nascer, nessa cidade, poucos dias depois, ou seja, a 5 de Agosto de 1109. Porém, Almeida Fernandes “esqueceu-se” de dois factos importantes. Em primeiro lugar, é o próprio documento da doação, onde se apoia, que o desmente, porquanto nessa data (29 de Julho de 1109) já o infante Afonso Henriques tinha nascido, como vamos ver. Em segundo lugar, o documento encontra-se assinado” (outorgado) por D. Teresa, que nesse documento jura a doação “super altare”, juramento que exigia a presença física dela, como é evidente e o direito medieval o confirma. E é também a Crónica dos Godos, em que igualmente se apoia, que nos conduz a uma data diferente.
2 - Atualmente, os autores estão divididos entre 1106, 1109 (uma pequena minoria 111), sendo que o ano 1109 era aquele que reunia maior consenso entre os historiadores. Porém, o ano de 1109 começou a ser substituído pelo ano de 1106, em consequência de um estudo realizado pelo investigador Abel Estefânio, estudo esse publicado no número 8º da Revista Medievalista e que se fundamente na Vida de S. Teotónio.
Vejamos, sumariamente, as duas datas, obtidas a partir de cada um dos documentos: Crónica dos Godos e Vida de São Teotónio.
A) – Se tomarmos como fonte essencial a Crónica dos Godos:
Temos de conjugar dois documentos: a Crónica dos Godos e a doação do mosteiro de Lorvão à Sé de Coimbra.
Da Crónica dos Godos quando refere:
“ …tendo morrido seu pai, o conde D. Henrique, era ele (infante Afonso
Henriques) ainda criança de dois ou três anos...”
Considerando que a morte de D. Henrique ocorreu em fins de Abril/princípios de Maio de 1112 (a partir de 1112, D. Henriques deixa de constar da outorga dos documentos) então a Crónica dos Godos permite-nos dizer que é mais próximo dos dos dois ou dos três anos, se houver um facto que nos obrigue a tal. E esse facto existe efetivamente. Trata-se da referência que D. Teresa faz, na doação do mosteiro de Lorvão, aos seus“filhos e filhas”:
“Damos o referido cenóbio (mosteiro) com as suas vizinhanças...
para redenção das nossas almas e das almas dos nossos reis, senhores
Fernando e Afonso ( respetivamente avô e pai de D. Teresa) e dos
nossos filhos e filhas”.
Daqui resulta que, em 29 de julho de 1109, data da doação do mosteiro de Lorvão à Sé de Coimbra e na qual D. Teresa pede pela “redenção das nossas almas... e pelas almas dos nossos filhos e filhas”, D. Afonso Henriques já tinha nascido, contrariando frontalmente a tese de Almeida Fernandes que coloca o nascimento do Rei Fundador em 5 de agosto de 1109. As filhas de D. Teresa eram as infantas Urraca, Sancha e Teresa e os filhos eram o infante Afonso Henriques e outro irmão que teria nascido antes dele e morrido precocemente. Só se compreende a referência aos “filhos” se de facto eles já tivessem nascido. Por outro lado, a circunstância de o texto referenciar expressamente o plural para diferenciar os varões das mulheres, revela que, nessa altura, os Condes tinham mesmo esses dois filhos, o primeiro dos quais, como se disse, já falecido.
Ora, tomando como fonte a Crónica dos Godos (como faz Almeida Fernandes)
e considerando que quando D. Henrique faleceu, em fins de abril/princípio de maio de 1112, então o infante Afonso Henriques teria pouco mais de três anos, o que aponta para os três primeiros meses de 1109. Portanto, muito antes da data preconizada por Almeida Fernandes (5 de agosto de 1109), data essa “escolhida” para defender o nascimento de Afonso Henriques em Viseu.
B – Se tomarmos como fonte a “Vita Sancti Theotonii”.
Como se disse, o número 8º da Revista Medievalista, referente a julho-dezembro de 2010, foi publicado um estudo inédito, da autoria de Abel Estefânio, onde o investigador, baseado num manuscrito do sec. XII, que se encontra na Bilioteca Pública Municipal do Porto, sobre a Vida de S. Teotónio, defende ter D. Afonso Henriques nascido em 1106. A tradução do latim da parte final do manuscrito, efetuada pelo Prof. Aires Nascimento e citada por Abel Estefânio e com a qual se concorda, é do seguinte teor:
“Adormeceu na consciência de ter vivido bem e dos prémios dos
méritos, no dia décimo segundo antes das calendas de Março, a
um sábado, primeira hora do dia, aquela em que Cristo ressuscitou.
Foi sepultado no dia décimo primeiro das mesmas calendas, no ano 56
do referido rei Dom Afonso I de Portugal, em cujo tempo recebeu a
veste de Cristo, e no ano 35 do seu reinado. Viveu em votos de vida
regular trinta e um anos. Cumpriu o tempo inteiro da sua vida, como
ele referia, entre setenta e oitenta anos, segundo o padrão das
escrituras”.
Este texto da Vita Theotónii contêm elementos que, relacionados com a data da morte de S. Teotónio, nos dá a data do nascimento do infante Afonso Henriques. O excerto da parte final da Vita Theotónii diz-nos o dia e mês em que ocorreu a morte de S. Teotónio, ou seja, 18 de fevereiro (dia XIIº das kalendas de março), mas não nos diz o ano. Existe, porém, consenso generalizado entre os autores, no sentido de que tal facto ocorreu no dia 18 de fevereiro de 1162, porquanto o último documento do prior S. Theotónio é dessa ano.
. Em sintonia com a tradição do ano de 1106 está também a informação existente na pia batismal da capela de S. Miguel do Castelo, em Guimarães, onde a tradição diz que, em 1106, foi batizado D. Afonso Henriques, como resulta de uma inscrição mandada fazer, em 1664, pelo prior da Colegiada de Nª Senhora da Oliveira, D. Diogo Lobo da Silveira:
“NESTA PIA FOI BATIZADO EL-REY DOM AFONSO HENRIQUES PELO ARCEBISPO DE BRAGA S. GERALDO, ANO DO SENHOR DE 1106.
Assim, baseados no texto da Vita Sancti Theotónii e considerando que a sua morte ocorreu em 1162 e que, nessa altura, o nosso primeiro monarca tinha 56 anos de idade, então ter-se-á de concluir que o nosso primeiro rei teria nascido em 1106 (1162-56=1106). E conforme refere o mesmo texto, na altura da morte de S. Teotónio, D. Afonso Henriques contaria 35 anos do governo, iniciados em 1128, com a vitória na Batalha de S. Mamede.
E qual a credibilidade do texto do manuscrito da Vita Theotonii?
A Vita Beatíssimi Domni Theotonii, primeiro prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e conselheiro espiritual de D. Afonso Henriques, é a fonte mais antiga a fazer referência à data de nascimento do nosso primeiro monarca. Abel Estefânio defende tratar-se de um autógrafo escrito cerca de 1162”, no período entre morte de S. Teotónio e a sua canonização (1163).
Esta proximidade da produção do texto (autógrafo) da Vita Theotonii (1162) relativamente à data de nascimento de D. Afonso Henriques (1106) e a sua contemporaneidade com o período da sua vida (1106-1185), torna esta fonte mais credível que as outras, produzidas em tempos mais afastados, nomeadamente a Crónica dos Godos, escrita muito provavelmente pouco depois da morte de D. Afonso Henriques. A Crónica dos Godos tem contra si o facto de apresentar três referências contraditórias acerca da data do nascimento do nosso primeiro monarca, retirando-lhe credibilidade:
Era de 1151 (1113) – Nasceu o infante D. Afonso, filho do Conde D. Henrique e da
rainha D. Teresa e neto do rei D. Afonso.
Era de 1163 (1125) – O infante D. Afonso (…), tendo cerca de 14 anos de idade, na
praça de Zamora tomou por suas próprias mãos (…) as armas
militares e, ali mesmo, no altar, as vestiu e cingiu (…).
Era de 1166 (1128) – (…) Porquanto, morto seu pai, o conde D. Henrique, como ele
(infante Afonso Henriques) ainda fosse criança de dois ou três
anos (…).
Ora, Almeida Fernandes, ao socorrer-se da Crónica dos Godos para determinar a data de nascimento de D. Afonso Henriques, “escolheu” uma fonte pouco objetiva, não só pela contradição de datas, acima assinaladas, mas também por conter uma referência incerta: “ Porquanto, morto seu pai, era ainda criança de dois ou três anos”. De todo o modo, tendo como fonte a referida Crónica, nunca a conclusão é aquela que Almeida Fernandes retira dela, ao fazer convergir para data certa (dia, mês e ano), forçando a interpretação dos documentos em que se baseia, com o objetivo de “provar” que D. Afonso Henriques nasceu em Viseu, a 5 de Agosto de 1109. Enquanto a historiografia moderna tenta encontrar o ano do nascimento do Rei Fundador, Almeida Fernandes, nas suas certezas, consegue dizer-nos o dia, mês e ano do nascimento de D. Afonso Henriques. A forma enviesada como lá chegou revela total falta de credibilidade da sua “tese”.
*
* *
Analisada a questão do local e data de nascimento do Rei Fundador, vejamos mais alguns dados da sua biografia.
Teve como educador, até aos 12 anos, Egas Moniz pelo que terá sido criado dentro dos valores, exemplos de piedade e justiça, normalmente atribuídos ao seu Aio.
Fundou e enriqueceu, com amplas doações, os vastos mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, S. João de Tarouca, Santa Maria de Alcobaça e S. Vicente de Fora. A Colegiada de Guimarães, sua capela real, foi amplamente ilustrada. Restaurou as catedrais de Lisboa, Viseu, Lamego e Évora. Fundou as Ordens Militares de S. Bento de Avis e da Ala. Deu consideráveis rendas aos cavaleiros de S. João de Jerusalém e aos dos templários.
Como vimos, vários “escritores”, ao longo dos tempos, bem como os monges de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça, exaltando “as suas virtudes e piedade”, quiseram elevá-lo à categoria de santo, tentando por mais de uma vez a sua canonização. Mas, para além de santo, a historiografia afonsina mostra outras faces de D. Afonso Henriques: de heroi, santo, vidente, chefe guerreiro e rei fundador.(1)
(1) - Sobre a questão da data e local do nascimento, consultar, mais desenvolvidamente, do Autor, “D. Afonso Henriques – Data e Local do Nascimento do Rei Fundador”.
2 - OS Monges de Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça
Como vimos, as primeira
iniciativas com vista à beatificação de D. Afonso Henriques, fundador de ambos
os mosteiros, partiram dos respetivos monges.
2 - Padre José
Pinto Pereira
Nasceu, em Guimarães, no dia 31 de Março de 1659, sendo filho de Jerónimo Vaz de Sá e de
S. Bernardo (1090-1153), depois da morte de sua mãe, fez-se monge em
Cister (Citeaux, em francês), mosteiro fundado em 1098 por S. Roberto, monge
beneditino de Molesmes. Em 1115, S. Bernardo iniciou a fundação do mosteiro de
Claraval, nome aportuguesado de Clairvaux ( Aube, França), de quem foi o
primeiro abade e a quem se deve o engrandecimento e prestígio universal dessa
Ordem. O arcebispo de Braga, D. João Peculiar, encontrá-lo-ia no 2º Concílio de
Latrão, em 1139, de quem se tornou grande amigo. S. Bernardo também era amigo
pessoal de D. Afonso Henriques e interveio diretamente junto do Papa Alexandre
III para que Portugal fosse reconhecido como Reino independente, o que veio a
acontecer, já depois da sua morte, em 1179, através da Bula Manifestis Pobabatum est.
À morte de S. Bernardo, Claraval tinha fundado 70 mosteiros. Claraval
passaria a ser o mosteiro mais importante da Ordem de Cister. Há quem afirme
que S. Bernardo, mentor da Ordem do Templo, no ocidente e da Ordem Teutónica, a
oriente teria sido o precursor do projeto espiritual de uma Europa Unida.
No sec. XII, estabeleceram-se em Portugal
várias ordens religiosas, sendo a primeira a dos “Bernardos”, nome pelo qual
são conhecidos os religiosos da ordem de S. Bernardo ou de Cister. D. Afonso
Henriques prometeu a S. Bernardo de Claraval que, se conquistasse Santarém aos
mouros, mandaria construir um mosteiro para a Ordem de Cister em Portugal. Diz
a crónica que S. Bernardo, por inspiração divina, quis fundar um convento da
sua ordem em Portugal, tendo enviado, para o efeito, homens de reconhecidas
virtudes, ao anacoreta João Cerita
que vivia nas imediações de Lafões. Quando chegaram, João Cerita tê-los-ia
conduzido a Guimarães, onde D. Afonso Henriques tinha a sua corte e ali vivia.
O monarca, recebeu com satisfação a missão dos religiosos franceses,
concedendo-lhes licença para a fundação do solicitado convento. Os monges
iniciaram então a procura de um lugar solitário, acabando por chegar às margens
do rio Barosa e junto duma serra construíram quatro celas e uma ermida que
dedicaram a S. Salvador. D. Afonso Henriques, numa visita que fez ao local,
ficou admirado com a pobreza em que viviam os religiosos e pediu-lhes orações e
ajuda, pois, iria reconquistar a vila de Trancoso aos mouros. Vencidos os mouros,
D. Afonso Henriques teria mandado construir, junto das celas, uma igreja e
pelas mãos do arquiteto, João Frilano, teria surgido o plano do mosteiro
cisterciense de S. João de Tarouca, o primeiro que a ordem dos Bernardos teve
em Portugal.
D. Afonso Henriques fundou também, juntamente com D. Telo e D. João
Peculiar, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (1132 ) e nele quis ser
sepultado. Enriqueceu-o de bens e privilégios, de tal modo que a situação
material do mosteiro atingira a importância e a opulência que haviam de influir
na cidade e na história geral do país, pela irradiação que as suas iniciativas
alcançaram, permitido lançar-se no caminho da instrução e da cultura. Tal
circunstancionalismo haveria de influenciar e determinar a criação da
Universidade de Coimbra, em 1537. Segundo o Prof. José Mattoso, Santa Cruz de
Coimbra, devido a um conjunto de circunstâncias, é a “instituição religiosa
medieval portuguesa acerca da qual possuímos, de longe, mais informações graças
ao facto de os seus cónegos terem redigido, ainda durante o sec. XII, ou seja,
bastante perto dos acontecimentos que relatam, não só três textos narrativos
ainda impregnados de fervor do impulso inicial, como também vários textos
normativos muito pormenorizados” (cf. D. Afonso Henriques, pag. 117). Esses
textos são: A vida de Telo (fundador)
e a Vida de Teotónio (primeiro prior)
e a Vida de Martinho de Soure (o
clérigo exemplar).
A
fundação do mosteiro de Alcobaça surgiu graças à vitalidade do espírito
claravalense e da devoção do nosso primeiro monarca a Nª Sª de Claraval.
O
pedido de fundação do mosteiro de Alcobaça foi formulado por D. Afonso
Henriques, cerca do ano de 1151, tendo a carta de fundação sido expedida, por
D. Afonso Henriques e D. Mafalda, a 8 de Abril de 1153, doando a S. Bernardo e
aos seus sucessores na Abadia de Claraval uma herdade regalenga, situada entre
Leiria e de Óbidos, local onde já existiam,
entre outras, a povoação de Alcobaça. Em 1157, o mosteiro já estava em
funções, com monges vindos de Claraval.
As preocupações culturais podem verificar-se através do fundo riquíssimo
dos códices alcobacenses, como a biblioteca e o cartório. Tinham escolas
públicas de latim, lógica e teologia. Nos fins do sec. XVI, os monges
cistercienses de Alcobaça possuíam já uma tipografia própria, donde saíram
obras importantes, como a 1ª parte da Monarchia
Lusitana, em 1597. Nos primeiros séculos, o mosteiro era governado por
abades vitalícios eleitos pelos monges e confirmados pelos de Cister e
Claraval. O arquiteto da abadia, segundo Fr. Bernardo de Brito, terá sido um
monge claravalense, denominado Frei Desidério.
Nos séculos XVII e XVIII, à sombra da Real Abadia de Alcobaça, surgiu o
que alguns chamam “Historiografia
Alcobacense”, erguendo como obra de conjunto, a Monarquia Lusitana.
Dessa “escola”, mas não vivendo na mesma época, fizeram parte os
seguintes autores: Frei Bernardo de Brito (escrevendo as partes I e II, desde o
dilúvio ao reino de Leão), Frei António Brandão (partes III e IV: desde D.
Henrique a D. Afonso III), o seu sobrinho, Frei Francisco Brandão (partes V e
VI: reinado de Dinis), o beneditino Rafael de Jesus (parte VII: D. Afonso IV) e
Frei Manuel dos Santos (parte VIII: reinado de D. Fernando).
Cada um trouxe para a obra a marca da sua formação, constituindo a
primeira tentativa de uma “História
Integral da Nacionalidade”.
Nasceu, em Guimarães, no dia 31 de Março de 1659, sendo filho de Jerónimo Vaz de Sá e de
Jerónima da Cunha. Era profundo
conhecedor do latim e italiano. Das suas obras salientam-se o “Apparatus Históricus” e “Benedictus XIII, Summus Ecclésiae Pontifex
Gratia Benedictus”. Além de fidalgo da casa real, foi expedicionário em
Roma durante cerca de 30 anos, sendo durante esse período que elaborou a sua
tese sobre a beatificação de D. Afonso Henriques. D. João V solicitou o seu
regresso a Portugal, nomeando-o Conselheiro para o Ultramar. Faleceu poucos
dias depois, a 17 de Fevereiro de 1733. Reconhecendo os seus altos serviços, D.
João V mandou fazer-lhe pomposas exéquias (cf. padre António Caldas-op.cit.,
pag. 177).
A paixão do rei pelo
esplendor levara-o a dotar o culto católico com verdadeira imponência. Uma
orquestra de 72 músicos, italianos e portugueses, foi criada para o serviço do
culto. Porém, a sua devoção não se reduz à magnificência das cerimónias
litúrgicas, mas perpetuava-se também através dos numerosos templos e conventos
que espalha por todo o país
Conclusões
1º – Os cónegos de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça, cujos mosteiros foram fundados por D. Afonso Henriques, sempre assumiram a incumbência e a responsabilidade de cultivar a sua memória, de tal modo que, logo no início do sec. XVI, promoveram a sua beatificação.
2º - Em meados desse século (1556), os cónegos
de Santa Cruz de Coimbra, promoveram mais uma vez a beatificação, mas, em
nenhuma delas foi obtido deferimento pela Cúria Romana.
3º – Em 1728, o
vimaranense, padre José Pinto Pereira, faz nova tentativa, com a publicação do APPARATUS HISTORICUS - De Argumentis
Sanctitatis Regis Alfonsi Henrici
(Preparação Histórica acerca dos argumentos da santidade do Rei Afonso
Henriques), apresentando no início da obra um sumário dos 10 argumentos
(Syllabus Argumentorum), que depois desenvolve, com mais pormenor, ao longo do
livro, tudo com o objetivo de comprovar
a santidade de monarca.
4º – Esses pedidos de
beatificação foram fundamentados em “factos” que na altura eram considerados
verdadeiros pelos seus proponentes, mas que a historiografia moderna, sobretudo
a partir de Alexandre Herculano, passaram a considerá-los meras lendas.
5º - Essa convicção da
verdade dos factos resulta de, não obstante a inação de Roma, os monges de
Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça, continuarem a exaltar as virtudes guerreiras,
unidas às virtudes geralmente atribuídas a um santo, condição bastante para o
qualificarem de bem-aventurado,
chegando mesmo a ser-lhe composta uma comemoração, com antífona e oração, como
se o nome de D. Afonso Henriques já constasse da lista dos santificados.
6º - Em princípio, o impulso processual para a beatificação ou canonização
pode ser iniciado por qualquer pessoa ou associação de fiéis, em comunicação
dirigida ao bispo da diocese, desde que decorridos, pelo menos, cinco anos após
a morte do candidato, salvo em casos muito especiais.
7º - Depois de recebido em
Roma o processo, que correu termos perante o bispo local, o relator e seus
colaboradores elaboram a chamada Posição (Positio), constituída por todos
elementos recolhidos pela investigação.
8º-
De acordo com as regras canónicas, para se chegar à beatificação é preciso o
reconhecimento de um milagre, atribuído à intercessão do candidato (venerável),
sendo que, depois disso, é necessário ainda outro milagre para aceder à
canonização.
9º – O INDEX ac status causaram (índice e situação das causas) é uma obra
disponível
que contem todas as causas de beatificação
e canonização, abrangendo o trabalho que a Congregação desenvolveu desde 1588,
data da sua formação, com o Papa Sisto V, até ao fim de 1999.
10º - Existem inúmeras
causas paradas há muito tempo, sendo que algumas das quais mereciam a devida
atenção, especialmente as causas dos candidatos leigos.
11º - Como bem refere o cardeal
Saraiva Martins, na obra citada, a ”santidade não é um luxo de alguns ou o
monopólio de certos privilegiados, mas é vocação aberta a todos”.
Narciso
Machado
Bom dia caro Narciso Machado,
ResponderEliminarExcelente exposição. Muito boa mesmo.
Cumpts,
João Ribeiro